Dedico aos amigos do cineclube Raul Lopes, especialmente à Lília Olmedo Monteiro, nossa anfitriã.
No livro “A Hora da estrela” (1977), de Clarice Lispector, a personagem Macabéa apaixona-se pela palavra efeméride, termo que Seu Raimundo, também um amante discreto das palavras difíceis, a manda copiar “com sua letra linda”.
Fortuna e infortúnio têm suas nuances. Não por acaso, Eduardo Portella, autor do prefácio do livro, intitulado “O grito do silêncio”, costumava dizer: “o acaso existe”. E previsto ou imprevisto, (não tem a pretensão esse texto, de mais ou menos oitocentos caracteres, quitar a discussão filosófica acerca da questão do destino), morre Suzana Amaral, autora da obra-prima, que é a versão cinematográfica da história de nossa Maca, justamente no ano do centenário de Clarice Lispector. O filme é de 1985, lançado em 1986.
Decerto, ambas, escritora e cineasta, habitarão a mesma constelação em nossa memória. Duas mulheres notáveis, que realizaram obras de arte da mesma estatura. Porque o filme de Suzana não é uma simples adaptação do livro, ele é uma criação autônoma, cheia de vigor e frescor, que nos chega, nesse 2020 complicado, atualíssima, como pude experimentar novamente na sessão virtual do cineclube Raul Lopes, aqui de Petrópolis, na última sexta-feira fria do dia 26 de junho.
No livro, a história se passa no Rio de Janeiro. Macabéa vive em seu quarto coletivo, que ficava “num velho sobrado colonial da áspera rua do Acre”, dividindo-o com colegas que também lutam para sobreviver em uma cidade nada hospitaleira para uma nordestina órfã como ela, que vem para o Rio de Janeiro, então capital federal, cheia de sonhos. No filme, é a capital paulista que engole Macabéa e toda sua vontade de viver. Macabéa, como os macabeus, povo hebraico que resiste bravamente à dominação grega, como nos lembrou Àquila, na sessão, é a resistência em pessoa, em sua curiosidade e subjetividade que se agarra a parcos recursos. Um radiozinho à pilha é a única peça que estabelece sua conexão com o mundo por meio de palavras e informações aleatórias da Rádio-Relógio.
Em nossa calorosa discussão no cineclube, alguém observou que as informações da Rádio-Relógio eram da ordem da famigerada cultura inútil, feita para despistar as pessoas em regimes totalitários, como nas edições das revistas Reader Digest. Programas nesse sentido, com informações ocas e receitas de bolo, eram comuns em ditaduras. De modo que saber quem foi o homem que escreveu “Alice no País das Maravilhas”, ficar perscrutando o significado da palavra cultura e renda per capta, e saber que “uma mosca pode atravessar o mundo em vinte oito dias “(filme), se são, de um lado, apenas estratégias para enganar e assassinar o tempo dos incautos, no caso de Macabéa, são subterfúgios e oportunidades para uma jornada através do espelho. Sim, as palavras, que pingam do pequeno transistor, são também possibilidade para uma existência poética - e que existência!
Livro e película levam essa brincadeira com as palavras a sério, tal como postulava Arquimedes. No livro, o capítulo da cartomante é um capítulo à parte. Clarice parece piscar para Machado, e, se a cartomante do velho Bruxo falha miseravelmente, a de Clarice parece guardar intimidade com o incognoscível. Ao conhecer o destino de Maca, a cartomante, movida de um sentimento de compaixão quase maternal, como quem pega uma criança indefesa no colo, conta uma pequena história de ninar para Macabéa. A cafetina, que já havia visto de um tudo nesse mundo, ao acessar o destino de nossa querida personagem em sua bola de cristal, cria uma ficção, um conto de fadas para a nordestina, em que a estrela do Mercedes que atravessa o caminho de Macabéa, se tornará a hora de maior brilho em sua existência infeliz, quando ganhará as ruas “grávida de futuro”, pensando no seu príncipe alemão de olhos azuis.
E no filme, a interpretação magistral de Fernanda Montenegro? O detalhe de tirar o Olímpico da vida de Macabéa, aquele homem bobo com sua frágil masculinidade, que de olímpico não tinha nada, para depois embuti-la de sonhos e brilho, nem que fosse por alguns minutos eternos? Gosto do jeito que a atriz pergunta: “Você tem medo das palavras?” Macabéa diz: eu tenho. E como Maca tem, é também a cartomante ficcionista, para que a personagem vibre radiante e celebre clandestinamente os dias de sua existência em uma sociedade que tão pouco lhe ofereceu. Como observou Miriam Mariano ontem, no cineclube: “há muitos lugares para a linguagem, somos seres cindidos; o inconsciente e consciente têm seus jogos e mistérios, que estão também na faculdade de forjar ficções para nossas vidas e as dos outros”. (Acho que parafraseei mal, me perdoa, Miriam Mariano?)
Clarice, que veio da Ucrânia para o Brasil, se dizia brasileira, porque, segundo ela, foi aqui que seus pés tocaram o chão pela primeira vez. Se Clarice escreve seu primeiro livro aos dezessete e o publica com dezenove, é com quarenta anos que Suzana Amaral desabrocha para a arte, depois de ser mãe de nove filhos. Clarice também é mãe, de dois, mas do primeiro ao último livro, “Perto do coração selvagem” (1944), e o último, que foi “A hora da estrela” (1977), seguiu itinerário próprio, deixando a crítica , por vezes, boquiaberta, quando não conseguia encaixá-la em nenhum dos sistemas literários já estabelecidos.
Suzana Amaral também impressiona: o filme “A hora da estrela” é premiado no festival de Berlim em duas categorias: direção (o OCIC e o C.I.C.A.E. Award), e um Urso de Prata de melhor atriz vai, merecidamente, para Marcelia Cartaxo, que está magnífica no papel de Macabéa. Há também uma indicação ao Urso de Ouro para Suzana.
Mas voltemos às efemérides, um dos brinquedos da personagem na novela e na película. No mundo lúdico de Macabéa, com seu corpo frágil e sua vontade de viver gigante, são essas ninharias, palavras jogadas ao vento, que a investem de energia poética e iluminam seu mundo e o nosso. Benjamin, nas Passagens, menciona como crianças são irresistivelmente atraídas para um canteiro de obras, no qual, por vezes, só se encontram resíduos, quinquilharias, e coisas quebradas. Entretanto, é nesse mundo de ruínas que um pequeno mundo infantil finca suas raízes, desafiando toda a realidade externa. Macabéa, do filme e do livro, ainda que frágil, forjou uma realidade cheia de mistérios, repleta de significados pulsantes, instigados pela energia poética da qual investia as palavras desconhecidas que lhe chegavam.
A cena do metrô, no filme, é um exemplo disso: um mergulho ardente no inconsciente e no desejo, num domingo que, à primeira vista, nada tinha a lhe oferecer. O túnel para Macabéa é seu buraco do coelho de Alice. E a cena diante do espelho, no dia que aprende a mentir com Glória, e tira o dia de folga, em sua primeira experiência de uma liberdade que ela própria criara para si – aquela cena - eu diria, se hoje me perguntassem: é uma das cenas mais bonitas do cinema brasileiro. Ali, também ela como a Alice de Lewis Carroll, atravessa e transcende o mundo e a si mesma. Está envolta em luz e mistério, à parte de uma sociedade que a castiga e a exclui, lhe negando tudo. Clarice, que era acusada de não escrever “romance social” tem a crítica aos seus pés ao unir a profundidade de seu universo metafísico a uma dura parábola do destino dos nordestinos que migram para o sudeste rico. “Quantos talentos o Brasil não perde, como Macabéa, ao negar tanto aos nossos jovens?” – (acho que foi Eliane que observou, se não me falha a memória).
Consulto o dicionário: a palavra efeméride, além de significar “fato importante ou grato ocorrido em determinada data”, também pertence ao campo da astronomia. Lá, significa: “tábua astronômica que registra, em intervalos de tempo regulares, a posição relativa de um astro. Daqui a cem anos, teremos as efemérides de Suzana e Clarice aproximadas. Numa mesma constelação? O acaso existe? Como estará o mundo até lá? Parafraseando Clarice, “é preciso não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.” Digamos sim à vida, e fiquemos em casa.
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Aqui em Petrópolis, é tempo de camélias. Brancas ou rosáceas, elas são, nesse inverno, pura explosão de vida. A despeito da pandemia e do distanciamento, as noites de maio têm sido as mais estreladas, desde minha infância. Resisti muito a esse encontro virtual do cineclube. A vida comunal me é cara, mas me render à dura verdade de que não poderíamos estar reunidos presencialmente, me parecia uma constatação difícil, por isso evitei, até ser chamada por Suzana, Clarice - e Lília, a melhor anfitriã de todos os tempos. Foi muito bom, e acendeu a esperança de que em breve, dias melhores virão e estaremos juntos novamente.
Tinha de escrever um texto para um blog e tinha um prazo, mas não deixava de pensar na experiência de ontem. Decidi, então, torná-la tema dessa pequena crônica. Peço desculpas se não relatei com exatidão os acontecimentos ou a fala de alguém, ou mesmo se me esqueci de alguma informação importante. Escrevo esse texto, pensando carinhosamente em todos vocês: Lília, Lúcia, Áquila e Vânia, Miriam, Marise, Cibele, Senhor Luiz, Sônia, Elisabeth, Guaraciaba, Facó, Marise, Michelle, Luciano e tantos outros que tornam minha vida em Petrópolis tão mais aconchegante, em virtude de nosso convívio e da existência do cineclube. Obrigada!
Bibliografia:
https://zoom.us/j/9093040128
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
A hora da estrela. Direção de Suzana Amaral. São Paulo: Raiz Produções Cinematográficas, 1986.
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Cassiana Lima Cardoso é doutora em Literatura Comparada (UFRJ). Atualmente, é professora do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira, o CAP-UERJ. No ano de 2019, publicou seu primeiro livro "Desastrada e outros contos breves", integrando a Coleção I do Mulherio das Letras.
Cassiana, que maravilha de texto!
ResponderExcluirObrigado por compartilhar o momento aqui na página.
O blog está muito bacana! Fiquei muito honrada com o convite!
ExcluirParabéns pelo texto! Sem dúvidas, foi uma análise muito sensível do livro e do filme. O relato da experiência pessoal, no desfecho da postagem, também ficou bem bonito. Um abraço!
ResponderExcluirVerdade Daniel. Cassiana traz uma reflexão muito bem amarrada, repleta de experiência pessoal. Ficou muito bom!
ExcluirBoa tarde a todos.
ResponderExcluirInfelizmente não sei o que está acontecendo com a plataforma Blogger. Hoje, sábado dia 04 de julho 2020, alguns comentários estão chegando e outros não. Além disso algumas funções para edição também não estão funcionando adequadamente (controles internos do Blog)
As configurações de recebimento de mensagens estão ajustadas para aceitar todos os comentários, sem mediação, sem nenhum tipo de autorização prévia. Recebi mensagens via whatsapp que os leitores não estão conseguindo postar aqui. Espero que o mais rápido possível os responsáveis pela plataforma encontrem uma solução para o problema.
Peço mil desculpas pelo ocorrido. Com a regularização dessa instabilidade na plataforma, espero que as mensagens enviadas para Cassiana Lima Cardoso sejam recuperadas e que finalmente elas possam aparecer aqui.
Obrigado pela compreensão.
@entrelivresethistoires
Que post! Compartilhado.
ResponderExcluirSim!
ExcluirQue maravilha que texto. Vamos compartilhar para todos conhecerem Cassiana Lima Cardoso.
ResponderExcluirIsso mesmo!
ExcluirQue delícia de texto! No centenário da Clarice, tão dias de hoje! Parabéns!
ResponderExcluirCassiana nos fez reviver Clarice e levou todos nós ao cinema novamente!
ExcluirO filme está disponível na íntegra no Youtube.
Obrigado, Sheila!
Li e reli. O texto é viciante. Parabéns, Cassiana.
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