Recordo com carinho quando um eminente professor e crítico literário francês, já aposentado, entrou na biblioteca procurando por uma obra, cujo título não lembro, e sentou-se à minha frente. Durante meia hora, falou entusiasmado sobre o seu projeto mais recente da época, a publicação de um livro. Lembro que me marcaram profundamente o olhar penetrante e vivo e a maneira acalorada com a qual ele se referia à publicação que viria a lume. Para além do valor da obra em si, o livro lhe propiciava uma visível sensação de liberdade. Não pude deixar de pensar naquele momento na interessante relação entre os vocábulos livro e livre. Ambas as palavras têm origem na expressão latina liber, que contempla, assim, as duas acepções. A íntima conexão entre elas é evidenciada quando traduzimos “livro” para o francês: temos a palavra livre.
Livre era como eu me sentia na Biblioteca de Português, com as suas paredes de livros e sua história centenária. Uma anedota ocorrida em idos de 2016 nos ajuda a visualizá-la como um espaço de encontros e de trocas, em outras palavras, de liberdade. Dentre os vários eventos realizados naquele ano, a leitura de poemas foi organizada numa noite de primavera. Ao final, houve o concerto de um cantor lírico, que refletiu a babel de nacionalidades ali presentes: eu, brasileira, e Carolina, a bibliotecária que é chilena, recebemos um cantor peruano cantando em italiano para um público franco-luso-brasileiro no coração de Paris. A cantoria atraiu a atenção dos seguranças da Universidade que, apressados e quase sem fôlego, chegaram na biblioteca para tentar entender de onde vinha aquele som que reverberava em todo o prédio da Sorbonne.
Das descobertas que pude acompanhar ao longo dos anos na biblioteca, uma em particular me tocou bastante. Em meio a uma doação de livros empoeirados e empilhados em caixas de papelão, que foram esquecidos por anos nos porões de outra biblioteca parisiense, havia a primeira edição do livro Vidas Secas (1938) com uma dedicatória do autor. O exemplar pertence atualmente ao fundo de obras raras da Biblioteca de Português. Este, aliás, merece que dediquemos a ele atenção especial. Trata-se de um conjunto de exemplares contendo dedicatórias de escritores brasileiros, endereçadas em sua maioria a mediadores culturais, como tradutores ou professores franceses, em obras que datam da primeira metade do século XX. Nele encontramos um exemplar do livro Poesias (1924), de Manuel Bandeira, com a dedicatória do autor endereçada ao tradutor Jean Duriau, onde se lê: “A pedido de nosso amigo Oswald de Andrade, tenho o prazer de lhe mandar o meu livro de poesias. Ele encerra as três coleções que publiquei até esta data: Cinza das horas – versos anteriores a 1917; Carnaval – onde ainda aparecem sonetos parnasianos daquela mesma época; em fim o Ritmo Dissoluto – de 1920 para cá. Aceite os meus cumprimentos e disponha do criado”. Do próprio Oswald de Andrade, há um exemplar de Os Condenados (1922), com a seguinte dedicatória por ele assinada: “Ao Sr. Georges Le Gentil - mestre da minha literatura, a quem tanto deve o Brasil.” Outros homens de letras brasileiros figuram entre os dedicadores: Ribeiro Couto, Ronald de Carvalho, Raimundo Moraes, Mário de Andrade, Murilo Rubião, são alguns exemplos. Pouco conhecido, o fundo de obras raras da Biblioteca de Português tem relevância ímpar no âmbito dos estudos transversais sobre a circulação transatlântica de homens, objetos e ideias entre a França e o Brasil. Fica aqui registrada a sugestão de pesquisa.
Escrevendo estas linhas, várias outras histórias memoráveis me vieram ao espírito, acompanhadas de uma ponta de saudade. A partir de 2021, o acervo da Biblioteca de Português integrará os fundos da Biblioteca central da Universidade Sorbonne Nouvelle, localizada próximo à Place de la Nation. Assim, a biblioteca, tal qual a conheci, deixará de existir. Porém, ficarão gravadas em mim as lembranças daquele espaço de saber e de liberdade, onde encontrei o meu paraíso.
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O texto é dedicado às pessoas que partilharam comigo experiências na Biblioteca de Português, em especial Carolina Torrejón, Emmanuelle Espi e Paula Zambelli.
Dedicatória de Manuel Bandeira
Foto do acervo pessoal da autora.
Dedicatória de Oswald de Andrade Foto do acervo pessoal da autora. |
[1] Jorge Luis Borges, “Poema de los dones”, in Obras completas, vol. 2, Buenos Aires, Ed. Emecé, 1989, p. 187-188.
[2] Para conhecer um pouco mais sobre a história da biblioteca, remetemos aos artigos : Georges Boisvert, “Georges le Gentil et la création de l’Institut d’études portugaises et brésiliennes de la Sorbonne”, L’Enseignement et l’expansion de la littérature portugaise en France, Paris, Fondation Calouste Gulbenkian, 1986, p. 37‑45.
Marcel Bataillon, “Georges Le Gentil (1875-1953)”, Bulletin Hispanique, tome 56, 1954, p. 5‑13.
Penjon, Jacqueline, “Naissance de l’enseignement du portugais”, Reflexos: revue pluridisciplinaire du monde lusophone, mai 2019, on line: http://revues.univ-tlse2.fr/reflexos/index.php?id=582
Nataly Jollant
Doutora em Literatura e Civilização Brasileira pela Universidade Sorbonne Nouvelle.
Quem poderia imaginar que os porões da Sorbonne guardariam tesouros assim.
ResponderExcluirObrigada, Nataly! Gostei de rememorar, também, os momentos já vividos ali - entre livros - com você e outros amigos.
ResponderExcluirSim, Vladimir, verdadeiros tesouros
ResponderExcluirForam momentos de muita alegria, Solange! Grande abraço.
Belíssimo texto, Nataly. Traduz com muita sensibilidade tantos momentos agradáveis que ali vivenciamos! Pena que o espaço será desfeito, mas relatos como o seu farão a biblioteca permanecer na nossa memória.
ResponderExcluirQue bom que você gostou, Monik.
ResponderExcluirObrigada, Valéria! Foi ótimo ter vivenciado as várias experiências que tivemos no âmbito da biblioteca e que levaremos conosco.
Abraços!
Uau! Que texto bom! Senti saudades que ele fosse maior porque tive a sensação de já ter andado com você pela biblioteca que eu não conheço e encontrado histórias que eu tinha esquecido. Obrigado.
ResponderExcluirMáximo, meu amigo, tinha certeza que você ia gostar do texto da Nataly. Que bom que apareceu por aqui. Abraços.
ExcluirObrigada, fico feliz que o texto tenha despertado tantas sensações.
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