Alguns livros são fundamentais para compreendermos nosso presente, sendo muitas vezes grandes lições daquilo que não deveria ser repetido na história da humanidade. A "Autobiografia: o mundo de ontem: memórias de um europeu", do austríaco, judeu, humanista e pacifista Stefan Zweig (1881-1942) é um deles.
Die Welt von gestern: Erinnerungen eines Europäers foi publicado originalmente em 1941. Em 2014, foi lançada no Brasil a edição brasileira pela editora Zahar, organizada pelo saudoso Alberto Dines, que nos presenteou com um prefácio e um posfácio. O livro foi brilhantemente traduzido pela minha amiga, a jornalista e tradutora Kristina Michahelles.
Nunca atribuí tanta importância a mim mesmo a ponto de ficar tentado a contar a outros as histórias da minha vida. Foi preciso acontecer muita coisa, infinitamente mais do que costuma ocorrer numa única geração em termos de eventos, catástrofes e provações, para que eu encontrasse a coragem para começar um livro cujo protagonista - ou melhor, centro - sou eu mesmo. Nada mais distante de mim do que me colocar em primeiro lugar, salvo como um palestrante que faz uma apresentação com dispositivos; o tempo fornece imagens, eu me encarrego das palavras, e nem será tanto a "minha" trajetória que pretendo contar, e sim a de uma geração inteira - nossa geração única, carregada de vicissitudes como poucas outras da história. Cada um de nós, mesmo o menor e o mais insignificante, foi revolvido no seu íntimo pelos abalos sísmicos quase ininterruptos de nossa terra europeia; e eu, entre inúmeros tantos, não consigo me atribuir outra primazia senão a de que, como austríaco, como judeu, como escritor, como humanista e pacifista, sempre estive justamente nos lugares onde esses abalos fora mais violentos. Três vezes eles destruíram minha casa e minha vida, arrancando-me de tudo o que existiu antes, de todo o passado, e me arremessando como uma veemência dramática para o vazio, para o "não sei para onde ir", que eu já conhecia.
Mas não lamentei, pois é justamente o apátrida que se torna livre em um novo sentido, e só quem não está mais preso a nada pode se dar o luxo de não ter que levar mais nada em consideração. Por isso, espero cumprir pelo menos uma das principais condições de qualquer descrição adequada de contemporaneidade: sinceridade e imparcialidade.
Stefan Zweig
Autobiografia: o mundo de ontem
Prólogo, p. 13.
Referência mundial quando o assunto é biografia, Zweig foi um dos escritores de maior sucesso do século XX e um dos escritores mais traduzidos e publicados da sua época. Ainda hoje, ele é sucesso de vendas, e suas novelas são comumente adaptadas no teatro e no cinema de diferentes países.
Com uma escrita envolvente e extremamente acessível, características principais do modo zweiguiano de criação, essa autobiografia, concluída às vésperas do seu suicídio em 22 de fevereiro de 1942, é um emocionante relato não apenas da sua história pessoal, mas de um mundo que o escritor viu gradativamente desaparecer em função das grandes guerras.
A partir da leitura desse livro, somos capazes de reconstruir um retrato do mundo e da vida do jovem Stefan em Viena, passando pelo sua complexa condição de exilado (Inglaterra, EUA e Brasil), além do doloroso processo de perda da sua identidade nacional. Ao lado dele, teremos acesso ao elegante e famoso círculo de amigos composto pelos mais famosos escritores, pintores, filósofos do seu tempo.
Suas palavras registram a voz de alguém que percebe seu mundo, sua cultura e seu povo serem devastados pelos projetos de um ditador.
Em 1941, após uma pequena temporada no Rio de Janeiro, Stefan Zweig e sua esposa Lotte vão se instalar definitivamente na tranquila cidade de Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro.
O Brasil não aparece em sua autobiografia. Ao país ele dedicará um livro: “Brasil, um país do futuro”, sua versão idealizada do Brasil, uma espécie de Shangri-la. Seu olhar estrangeiro, impregnado por clichês e exotismos vai encontrar na forma pacífica com que o Brasil convivia com suas diferenças e contrastes a solução de um mundo sem guerras e sem conflitos.
Já era tarde demais ...
Apesar do seu amor pelo país, sua estadia em Petrópolis será breve.
Por trás da aparente felicidade, o escritor era tomado pelo violento duelo travado entre a sombra que o acompanhava e a luz que o mantinha vivo.
Na sua perfeita imperfeição Zweig sucumbirá.
@entrelivresethistoires
Rio, 29 de julho de 2020
Referências:
CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem in Textos de Intervenção- Seleção apresentações e notas de Vinicius Dantas. Coleção Espírito Crítico. Editora 34, 2002.
ZWEIG, Stefan. Autobiografia: o mundo de ontem - mémorias de um europeu. Trad. Kristina Michahelles. Rio de Janeiro. Zahar, 2014.
____________ Brasil, um país do futuro. Rio de Janeiro. Trad. Kristina Michahelles. L&PM Editores, 2013.
Site oficial Casa Stefan Zweig - Petrópolis RJ https://casastefanzweig.org.br/
Lindo post
ResponderExcluirZweig, atual como nunca.
Gosto demais dessa atemporalidade de SZ.
ExcluirAprendendo a "ler" SZ com vc. Gratidão.
ResponderExcluirE eu sempre aprendendo um pouco mais sobre Mário de Andrade com vc.
ExcluirObrigado pela visita e feedback, Sheila!
Um grande e afetuoso abraço.
Infelizmente, talvez, o livro parece mais atual do que nunca!
ResponderExcluirLeitura fundamental no Brasil de Bolsonaro... :(
Pois é ...
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