Autor de obras reconhecidas internacionalmente, traduzidas para mais de 55 países, Jorge Amado trouxe à luz, já na década de 1930, temas e personagens que até então não tinham espaço significativo na criação ficcional. Pelo menos não com o mesmo protagonismo e modo como ele teceu em sua rede de tramas. Ficou conhecido através de suas criações, como: Capitães da areia (1937), Gabriela, Cravo e Canela (1958), Dona Flor e seus dois maridos (1966) e Tieta do Agreste (1979).
Em Capitães da areia, a abordagem é a da exclusão/marginalização dos meninos de rua da cidade da Bahia e a luta travada para sobreviverem em uma sociedade tão desigual. Uma narrativa que se alterna em um tom ora documental, ora poético, pois, apesar de terem a fome por brinquedo, não lhe faltavam as gargalhadas claras, o sentimento de solidariedade entre eles e a linguagem mestra de suas falas tão sábias.
Pedro Bala é quem lidera o grupo dessas criaturas famintas de vida e de amparo. Carrega no rosto a cicatriz-metáfora de um menino marcado pela vida e para toda a vida, assim como sem-pernas, o menino deficiente físico que virou trapezista e nos arranca o fôlego e lágrimas no teu salto grandioso de liberdade; Professor, o único menino do grupo que lia e desenhava, que embalava as noites de solidão, no trapiche abandonado onde viviam, com suas histórias fabulosas, mostrando-se um verdadeiro partilha-dor do alento que a arte é capaz de nos trazer. Essas e tantas outras existências movem-se na trama para nos noticiar a dor e a delícia de ser brasileiro. Uma leitura necessária, atual, localizada no regionalismo nordestino da década de 30, mas, potencialmente marcada pela temática universal da humanização que emana da lida diária e cotidiana desses seres ex-cêntricos.
Gabriela, Cravo e Canela (1958), ambientada na Ilhéus da década de 1920, região cacaueira da Bahia, governada pelo mandonismo arbitrário dos coronéis, a narrativa é mobilizada por duas forças vigentes: a liberdade e a clausura. A liberdade do pensamento de Gabriela, de Malvina, duas mulheres de vivências sociais totalmente diferentes, mas igualmente lúcidas, desejadas e, sobretudo, seres desejantes, com seus desejos, vontades, opiniões, falas e condutas que sempre procuravam furar o bloqueio pesaroso de uma sociedade cingida pelo patriarcado. Por outro lado, a clausura das convenções sociais, dos códigos morais e de conduta que afundavam a cada dia a sociedade local ao atraso, ao pesar, à impossibilidade de ser e estar no Mundo com liberdade.
Feminicídio, violência doméstica, atraso versus progresso (disputa política), rótulos sociais, misoginia, moralismo, coronelismo, politicagem da troca de favores, tudo isso é deflagrado na obra de Amado, fecundo material para pensarmos os aspectos sociológicos de uma época, mas que, INFELIZMENTE, ainda traduz boa parte de nossa atualíssima conjuntura política e social no Brasil.
E também, e não menos importante, Gabriela, cravo e canela revela um autor habilidoso no uso de suas estratégias discursivas e literárias. Narrador debochado, descritivismo insinuante/ insinuador e calcado na ironia, intertextualidades com o repertório sociolinguístico popular, metonímias imbricadas a metáforas que remetem a um universo localizado e ao mesmo tempo amplo, sobre o ser e estar no Mundo. Mais uma vez o localismo abrigando potentes dilemas humanos e universais.
Enfim, são múltiplas as leituras que podem ser realizadas dessas e de outras obras de Jorge Amado, pois sua escrita ultrapassa o rótulo reducionista das “crônicas amaneiradas de costumes baianos”, uma vez que são textos que evocam nosso senso cidadão, transportando-nos ao constante treinamento de nossa humanidade, no sentido de nos sobrelevar à empatia, sentimento tão importante a todo tempo e, principalmente hoje, na atual conjuntura social, cultural, política do Brasil e do Mundo.
Esse texto é um convite, uma provocação, um desafio para nós, brasileiros, efetivamente lermos, grifarmos, debatermos, problematizarmos e também percebermos em que medidas a obra de Jorge Amado permanece atual, politizada e espargindo luzes para discussões ainda tão pertinentes na nossa agenda contemporânea.
Pedro Dorneles da Silva Filho
Mestre em Estudos de Literatura – Literatura brasileira e teoria literária (UFF)
Especialista em Literatura, memória cultural e sociedade (IFF)
Graduado em Letras (FAFIMA)
Pesquisador da obra de Jorge Amado, amante da literatura brasileira, aquele D’Ogum com Yemanjá, que tem fé na festa, acredita que em toda travessia há de se ter o afeto. Se não, nem vá!
Delícia de texto! Parabéns, Pedro. Jorge Amado é um autor a quem volto sempre com muita alegria. Carlos, ideia porreta esta sua de criar e manter este blog . :)
ResponderExcluirTambém adorei!
ExcluirObrigado pelo feed-back, Vanessa.
Beijos.
Obrigado pela receptiva gentil, Vanessa! Abraço fraterno :)
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