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Zweig, Freud e o Amor



Zweig, Freud e o Amor

ou


O circuito de correspondências entre Zweig e Freud entre 1908 – 1939 e sua importância na clínica psicanalítica para pensar o amor


Foi a partir do leitura da correspondência trocada durante 31 anos entre o escritor Stefan Zweig (1881-1942) e o médico neurologista e psicanalista Sigmund Freud (1856-1939) que resolvi escrever este ensaio, destacando talvez a principal lição de Zweig sobre um afeto tão discutido ao longo da história: o amor. 
Trata-se especificamente de evidenciar nestes escritos a relação de admiração e identificação entre Zweig e Freud em tempos em que a Europa vivia o luto, a melancolia e a angústia no entre Guerras, e uma Europa com mais de 9 milhões de mortos. 
Afinal, o que é o amor? Sem a pretensão de responder tal questão, começo estas breves reflexões pensando que o amor se faz uma categoria analítica muito presente no artesanato psicoterapêutico, e em algum grau, se mostra como um afeto muito presente no intenso diálogo entre estes dois grandes pensadores da primeira metade do século XX. 
A vida de Sigmund Freud foi marcada por envios e recebimentos de cartas. Cartas de amor à Martha Bernays, que mais tarde se tornaria sua esposa, cartas que expressavam sua proximidade com personalidades como a princesa Marie Bonaparte, e principalmente cartas a seus discípulos como Carl Gustav Jung e Sandór Ferenczi. Não obstante, a vida de Zweig também foi marcada por um intenso circuito de comunicação através da correspondência trocada não somente com sua segunda esposa, Lotte Zweig (1908-1942), mas com grandes nomes da literatura como Rainer Maria Rilke e Thomas Mann. 
De modo geral, os afetos são modalidades de expressões que Freud chamou de pulsões (1895, 1915), revelando estados internos da vida psíquica a partir de duas polaridades primitivas – o prazer e o desprazer. Tal ideia refina-se substancialmente ao longo de uma década junto a uma teoria freudiana em ebulição; em 1926 Freud introduz um conceito que permanece vivo na clínica contemporânea: o Eu, instância íntima e mais primitiva do sujeito, e que representa a “morada” dos afetos. 
Faz-se necessário compreender que o conjunto das cartas revela não apenas a admiração de Zweig por Freud e sua obra como também uma identificação marcante entre os dois, ainda que as vidas de Zweig e Freud tenham sido afetadas diretamente pelas Primeira e Segunda Guerras e suas consequências, como o desaparecimento de muitos de seus escritos e o exílio causado pelo antissemitismo na Europa, tornando essa comunicação fragmentada. Logo, falarei sobre o amor contido nesta rica correspondência trocada entre os dois amigos durante esses anos sombrios. 

Amor

Longe de ser consenso ou se resolver por si, o conceito de amor que proponho nestas linhas que tratam da correspondência entre os dois autores passa pela noção de identificação; em termos gerais, no campo da psicanálise, a identificação se caracteriza por um processo psíquico inconsciente pelo qual “uma pessoa assimila uma parte mais ou menos importante de sua personalidade à de outro que lhe serve de modelo” (Mijolla, 2005, p.913). 
Nesse sentido, destaco a seguir, pequenos fragmentos com o intuito de tratar a questão da identificação, ressaltando expressões muito utilizadas nas cartas. Um ponto importante: não é raro encontrar, ao longo das mensagens, um Zweig mais intenso ao dirigir-se ao seu interlocutor, iniciando e finalizando suas mensagens com expressões que demonstram forte admiração.
“Monsieur le professeur”, “votre fidèle” (Cannes, 18 de março, 1927), “Avec ma profonde admiration, fidèlement votre” (Salzburgo, 31 de dezembro 1929) ; estes dois exemplos dentre os diversos existentes nas correspondências dos dois amigos, demonstram a admiração que o jovem Zweig tinha pelo renomado psicanalista. “Cordialement, votre dévoué” (Viena, 4 de dezembro de 1929), dizia mais comedidamente Freud em uma das respostas. 
Imprime-se no decorrer da leitura das cartas os princípios da teoria do psicanalista J.D. Nasio (1997), na qual ele afirma existir um “ritmo” da presença simbólica do Outro no inconsciente Zweig, especialmente ao se dirigir tão fielmente ao “professor” Freud. Sob esta ótica, os escritos de Zweig direcionados a Freud (entendido aqui como o Outro simbólico), tem um compasso de admiração, que se nos permitirmos, evidencia um amor, onde o outro eleito não é apenas uma pessoa diante de si, tampouco uma força, um modelo, um excitante –, ele é tudo isso.  
Sou aqui um mero expectador daquilo que imagino quando penso em Zweig escrevendo as cartas à Freud. Na carta de 14 de abril de 1925 diz Freud: “Cher Monsieur, um très grand merci pour ce beau livre! J’ai lu d’une seule traite le premier essai (...)”; ao escrever uma carta de resposta e felicitar Zweig, Freud funciona como o “espelho” que o duplica no inconsciente de Zweig e produz a admiração. 
Questiono-me se nas respostas mais comedidas de Freud havia uma certa malícia freudiana em alimentar o desejo de Zweig (ou o vazio existencial), numa espécie de jogo que evidencia a importância – para a clínica psicanalítica – do que Jacques Lacan denominou o estádio do espelho. Resumidamente, Lacan articula suas hipóteses sobre a constituição do Eu e aponta para o fundamental papel do Outro neste processo. “Cordialement” ou “Avec mon salut cordial”, respondia Freud em muitas cartas. Em outras respostas, prolongava-se em gentilezas; “Votre visite chez moi était malheureusement trop courte” (5 de novembro de 1935). Um ritmo pendular interessante, e que alimenta, em muitos casos, relações de amor invariavelmente marcadas por afetos paradoxais.   
Entretanto, o espelho psíquico que as cartas revelam não deve ser pensado como  uma superfície lisa, livre de rachaduras ou reflexos enganosos – como um espelho comum; este espelho do qual trata a psicanálise representa uma complexa teia estilhaçada de identificação, e que segundo Nasio (1997, p.47), é “fragmentado em pequenos pedaços móveis de vidro, sobre os quais (...) se confundem com imagens do Outro e imagens de mim”, também conhecidas como alegorias “caleidoscópicas”. 
As mensagens trocadas entre Zweig e Freud deixam claro o exemplo de que as dores das perdas de uma guerra só puderam existir sobre um fundo de amor, aqui apresentado sob forma de processos de identificação (a admiração, por exemplo) – uma das diversas formas contemporâneas do amor. 
Nesse sentido, em um momento em que o Brasil é assolado pelo retrocesso social e negacionismo produzidos pelo ultraconservadorismo, as correspondências parecem bons exemplos – ainda muito atuais – de como podemos dar sentido ao luto, à melancolia e à angústia que muitos de nós estamos vivendo em tempos de isolamento social devido à pandemia e a opressão política.
E por qual via as correspondências propiciam isso? 
Através do movimento pendular “Zweig - Freud”, numa alternância entre falta e saciedade, identificação mútua entre nossos pares, e principalmente, a admiração de (U)m pelo (O)utro; Zweig, Freud e seus registros de lealdade, cordialidade, empatia e atenção. 
Possíveis vias do amor, por favor. 



Vladimir Bezerra 
Psicólogo, psicanalista. 
Doutorando em saúde coletiva pelo Instituto Fernandes Figueira – Fiocruz. 



Referências Bibliográficas:

FREUD, Sigmund. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 
FREUD, Sigmund; ZWEIG, Stefan. Correspondance. Paris: Payot & Rivages, 1995.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 3. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
MIJOLLA, Alain de. Dicionário Internacional de Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2005. 
NASIO, Juan-David. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.



Comentários

  1. Vladimir, obrigada por nos trazer Freud e Zweig nesta instigante correspondência.
    Você recupera a importância das cartas de afeto, de amizade e amor; algumas das que foram trocadas ao longo da história da psicanálise e da história da literatura, também. Especialmente,
    durante períodos de dor e de luto.

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    1. Solange, é um privilégio contar com seu inestimável comentário, tamanha minha admiração pelo seu trabalho. Obrigado.

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