Pular para o conteúdo principal

Joris-Karl Huysmans: um escritor para os tempos atuais


Embora seja arriscado fazer conjecturas sobre o que os autores do passado pensariam se estivessem vivos atualmente, o exercício de imaginação é quase sempre tentador. Ousamos, então, fazer a seguinte afirmação: provavelmente, Joris-Karl Huysmans (1848-1907) não aprovaria o título nem o conteúdo deste texto. Quem sabe, talvez se sentisse até mesmo ofendido. A reação não seria de todo injustificada, pois a obra do escritor francês é marcada por protagonistas avessos ao seu tempo e interessados por épocas pretéritas. Para muitas de suas personagens, a contemporaneidade oitocentista não passaria de um período vulgar, fruto da decadência moral, religiosa e social. Como afirma Durtal, figura central do romance Nas profundezas [1891], “só existe felicidade em nossa casa e acima do nosso tempo. Ah, encerrar-se no passado, reviver ao longe, sem sequer ler um jornal, ignorar a existência de teatros, que sonho!”[1].

A despeito da ojeriza do escritor pelo contemporâneo, a sua obra tem atraído, cada vez mais, novos olhares e se mostrado relevante para os nossos tempos. Em 2015, por exemplo, Michel Houellebecq publicou o romance Submissão, cujo protagonista é um professor universitário especialista na obra de Huysmans. A intertextualidade não foi arbitrária: na narrativa, especula-se um futuro distópico e de decadência para a França em 2022, dominada por dogmas religiosos fundamentalistas, de base islâmica, e por valores patriarcais. No ano passado, parte da prosa de ficção do autor ganhou ainda mais distinção ao ser incluída na prestigiosa coleção da Pléiade, que reuniu, em edição anotada e muito bem cuidada, dez de seus romances e novelas. Quase no mesmo período, o Museu D’Orsay, em Paris, realizou uma exposição dedicada ao seu trabalho como crítico de arte, destacando-o como um dos primeiros defensores dos impressionistas. 

No Brasil, os últimos anos testemunharam uma difusão maior de seus escritos. A maior prova disso foi a publicação de Là-bas [Nas profundezas], pela Carambaia, com tradução de Mauro Pinheiro e acompanhada de um posfácio do Prof. Dr. Pedro Paulo Catharina (UFRJ). Organizado como uma investigação do satanismo na Idade Média e em fins do século XIX, o romance se tornou objeto de resenhas tanto na imprensa tradicional quanto em vídeos de booktubers, com apreciações e comentários dos mais diversos. Huysmans não teria como imaginar uma divulgação mais contemporânea e tecnológica que essa. O interesse do público nacional pela narrativa pode ser medido pela recente escolha do livro como objeto de debate do Clube de Leitura virtual da editora, em plena crise do coronavírus. 

A experiência de confinamento gerada pela pandemia nos faz pensar, aliás, em mais um aspecto importante da obra de Huysmans. As suas personagens decidem não apenas se refugiar no passado, mas também adotam um distanciamento espacial. Em Às Avessas (1884), o texto mais célebre do escritor e um marco da ficção decadente, o protagonista Des Esseintes decide deixar Paris e se isolar na pequena Fontenay-aux-Roses. O aristocrata decora sua casa de modo excêntrico, com diversos objetos artísticos e elementos artificiais, como se vivesse em um universo especial, feito de pura arte. Já no romance En rade (1887), Jacques Marles refugia-se em um castelo em ruínas com a sua esposa, no interior da França, para fugir de cobranças de dívidas. Nesse local, em péssimo estado de conservação, o personagem lida com uma série de pesadelos assustadores e com a progressiva doença da mulher. 

A comicidade de seus textos – frequentemente cáusticos – é igualmente relevante para a nossa contemporaneidade, quando debatemos se haveria limites para o humor e como lidar com o politicamente correto. Muitas vezes, Huysmans coloca sob a mira de sua pena o absurdo de rotinas repetitivas e as burocracias da administração pública. É o caso da novela “La Retraite de Monsieur Bougran” [1888], cujo protagonista é obrigado a se aposentar de suas atividades como funcionário público depois de ser considerado velho demais. Inconformado e sem encontrar novos sentidos para a vida, ele decide se isolar em casa e transformar o local em uma espécie de cópia de seu antigo escritório, adotando os mesmos hábitos do passado, como se ainda estivesse trabalhando. Em períodos de reformas trabalhistas e administrativas, pode ser útil pensar no exemplo do senhor Bougran. 

Embora tenha desenvolvido uma relação ambígua com a ideia de contemporaneidade – ao mesmo tempo de rejeição e de inevitável tematização –, Huysmans certamente ficaria satisfeito em constatar a apropriação de sua obra por novos leitores. Seja ao lidar com a questão do (auto)isolamento com tanta recorrência, seja ao explorar as potências do cômico, o escritor continua a nos sugerir reflexões relevantes mesmo depois de 113 anos de sua morte. Produzida também em um momento de incertezas políticas e de grandes transformações sociais, a sua obra é capaz de indicar ao leitor da atualidade como chegamos até aqui. Aceitar o convite para conhecer os seus livros é aceitar a existência de múltiplas temporalidades coexistindo em uma mesma época. Afinal, a felicidade está acima do nosso tempo. 


[1] HUYSMANS, Joris-Karl. Nas profundezas. Tradução de Mauro Pinheiro. São Paulo: Carambaia, 2018, p. 21. [1891]


Daniel Augusto P. Silva é bacharel e licenciado em Letras (Português/Francês) e mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, é doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada (UERJ) e professor substituto do setor de francês da mesma instituição. É coorganizador do livro Páginas Perversas: narrativas brasileiras esquecidas (Appris, 2017).

Comentários

  1. Muito obrigado, Carlos, pelo convite! Foi uma ótima experiência! É sempre um prazer escrever sobre Huysmans e convidar mais leitores para conhecerem a obra desse escritor tão peculiar. Um abraço!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Fico feliz que tenha gostado, Daniel! Eu e os leitores do Blog que agradecemos você por ter generosamente compartilhado um post tão atual e que nos convida a mergulhar no mundo de Huysmans. Um grande abraço e volte sempre!

      Excluir

Postar um comentário

Deixe seu comentário:

Postagens mais visitadas deste blog

Os Colegas - Lygia Bojunga

Para o mês das crianças, "Livro Bacana"* Quando estava na frente da estante, procurando qual livro poderia indicar para este mês das crianças, não tive a menor dúvida de qual deles escolher: Os Colegas , de Lygia Bojunga.  O primeiro livro dessa escritora gaúcha, ganhador de vários prêmios, dentre eles o prêmio Jabuti, é um dos meus livros favoritos da vida. Motivo? Eu só o conheci na fase adulta e ele tocou profundamente a criança que existe em mim.  Essa obra-prima da literatura infantojuvenil brasileira tem como pano de fundo a nossa tradicional e popular festa de Carnaval e o mundo circense. Além disso, as personagens principais são animais, o que dá o tom de fábula para história. Assim, somos apresentados aos cachorrinhos Virinha, Latinha e Flor-de-lis; ao coelho Cara-de-pau e ao urso Voz de Cristal.  Por intermédio da sua descrição física e psicológica, as personagens vão sendo construídas por Bojunga, dentro do universo ficcional. No decorrer da narrativa, o leitor pod

"L'enfer, c'est les autres": um convite à leitura da representação do feminino no romance teatral sartreano em tempos pandêmicos [1]

Considerando que a literatura reflete os valores do tempo histórico em que se insere, entendemos que a expressão do teatro traz para o palco a fruição do discurso literário em sua profunda potência. Sob tal perspectiva, temos manifestações desse viés artístico na contemporaneidade dignos de nota. O beijo no asfalto , por exemplo, peça teatral de Nelson Rodrigues, teve mais uma adaptação recente ao cinema (2017), trazendo os bastidores do filme que encenam a peça, numa discussão entre várias vozes, mesmo as mais caladas, visto que o enredo transcorre às vésperas da ditatura militar do Brasil (1960). A temática de gênero, o controle ideológico por parte dos meios de comunicação e a condição humana como questionamentos do viver e do existir tornaram este trabalho mais que uma mera adaptação. Da mesma forma, os elementos há pouco elencados fazem do teatro de Sartre uma profunda fonte de inspiração para as questões relativas ao existencialismo tanto no final do século XX, quanto para a ref

O relógio das estrelas: Suzana Amaral e Clarice Lispector - Cassiana Lima Cardoso

Dedico aos amigos do cineclube Raul Lopes, especialmente à Lília Olmedo Monteiro, nossa anfitriã.   No livro “A Hora da estrela” (1977), de Clarice Lispector, a personagem Macabéa apaixona-se pela palavra efeméride , termo que Seu Raimundo, também um amante discreto das palavras difíceis, a manda copiar “com sua letra linda”.  Fortuna e infortúnio têm suas nuances. Não por acaso, Eduardo Portella, autor do prefácio do livro, intitulado “O grito do silêncio”, costumava dizer: “o acaso existe”. E previsto ou imprevisto, (não tem a pretensão esse texto, de mais ou menos oitocentos caracteres, quitar a discussão filosófica acerca da questão do destino), morre Suzana Amaral, autora da obra-prima, que é a versão cinematográfica da história de nossa Maca, justamente no ano do centenário de Clarice Lispector. O filme é de 1985, lançado em 1986. Decerto, ambas, escritora e cineasta, habitarão a mesma constelação em nossa memória. Duas mulheres notáveis, que realizaram obras de arte da mesma est