O encontro com o Pequeno Príncipe e o carneiro dentro da caixa: algumas reflexões sobre o ensino da literatura infantil
Se você, como eu, é professor(a) ou apenas se interessa pela literatura voltada à infância, te convido a trocar experiências literárias a partir de minhas percepções leitoras sobre a obra O Pequeno Príncipe, de autoria do francês Antoine de Saint-Exupéry.
Não é minha intenção aqui analisar todos os elementos e personagens do livro, mas apresentar apontamentos de um fragmento da narrativa, a fim de refletir sobre as interlocuções existentes entre os acontecimentos narrados e o ensino da leitura literária.
O Pequeno Príncipe narra a história de uma amizade entre um piloto, frustrado com as pessoas que não compreenderam seus desenhos na infância, e um príncipe que habita em um asteroide no espaço. O título original do livro é Le Petit Prince, e foi publicado pela primeira vez em 1943, nos Estados Unidos.
Em certa viagem, o piloto, que é o narrador a história, é obrigado a fazer um pouso emergencial no deserto do Saara, devido a uma pane no motor. Na primeira noite, ele é vencido pelo sono e, ao amanhecer, tem o primeiro contato com um personagem que não tinha a aparência absoluta de uma criança perdida no deserto, o pequeno príncipe. Depois de observar atentamente o sujeito, o piloto questiona o que ele estava fazendo naquele lugar. Ignorando a pergunta feita, o principezinho pede que lhe seja desenhado um carneiro.
É impossível desconsiderar as impressões do piloto em relação ao pequeno príncipe. Para ele, o rapazinho não parecia perdido, cansado, com fome, com sede ou com medo. O inusitado encontro entre os personagens, possibilitou encantamentos e descobertas.
Esses tipos de percepções acontecem também nos espaços dos anos iniciais, sendo estes verdadeiros campos de construção de vínculos afetivos e aprendizagens. As vivências diárias permitem ao professor uma relação mais próxima às crianças e, consequentemente, o conhecimento de suas vivências, bem como de suas necessidades, limitações, e experiências literárias.
Sempre que sou convidada para discursar sobre literatura infantil, questionam-me sobre como aconteceu meu encontro com o universo literário destinado à infância. Provavelmente, alguns leitores se identifiquem com minha trajetória literária, pois não tive a formação de leitor favorecida pela família ou pela escola. Gostar de ler (digo, ler literatura) não é algo que esteja intrínseco à infância. Assim como andar de bicicleta, o gosto pela leitura também precisa ser ensinado/aprendido. Foi por meio da contação de histórias narradas pelo LIVRO-VIVO em espaços informais que me tornei leitora (RAMOS, 2010).
É preciso esclarecer que nem todas as crianças se tornarão leitoras por obra do professor. Mas a relação mais fina entre o mediador e a literatura permite a promoção de uma leitura capaz de decifrar além dos sinais gráficos, capaz de doar sentidos ao que se lê e provocar mudanças.
Entende-se que muitos docentes não tiveram as condições necessárias para se tornarem leitores, o que não é uma deficiência pessoal, mas provém de fatores de natureza social, econômica, política, histórica e cultural. No entanto, [...] manter uma consciência ingênua em relação ao ato ajuda muito pouco” (CADERMATORI, 2012. p. 121).
A leitura é um ato individual realizado pelos sujeitos, mas é também resultado de movimentos de interação entre o leitor e o texto. Para Cosson (2016), “aprender a ler é mais do que adquirir uma habilidade”, essa ação entendemos como leitura literária, pois sobrepuja a leitura convencional à proporção que ultrapassa o domínio do código e a ação de ler corresponde ao leitor “[...] práticas sociais que medeiam e transformam as relações humanas”.
Mas voltemos para a narrativa. Mesmo sem compreender toda a situação, para atender ao pedido do principezinho, o piloto tira do bolso um pedaço de papel e uma caneta e diz que não sabe desenhar. Sem dar muita importância ao que o homem diz, o pequeno príncipe insiste no desenho. Depois de algumas tentativas e já sem paciência, o piloto desenha uma caixa e diz que o carneiro está dentro, o que deixa o principezinho completamente satisfeito.
Fonte: Imagem da Internet
Analogamente, as tentativas do piloto em desenhar um carneiro ao pequeno humano podem representar o professor dos anos iniciais e suas inúmeras estratégias para ensinar a leitura da literatura infantil. Entendo que “capacitar os alunos à leitura, desenvolvendo suas competências linguísticas e textuais é uma coisa, entretanto, transformá-los em leitores de literatura é outra” (CADERMATORI, 2012, p. 90). É preciso tomar cuidado com propostas que neutralizam, inibem as reais funções da literatura infantil e levam a cultura do ensino da leitura apenas para fins de decodificação.
Gostaria de citar ainda mais um elemento do encontro entre os personagens do livro: o desenho do carneiro dentro da caixa, feito pelo piloto. Após várias tentativas, o homem consegue desenhar exatamente o que o pequeno príncipe queria.
- Esta é a caixa. O carneiro que queres está aí dentro. E fiquei surpreso ao ver iluminar-se a face do pequeno juiz: - Era assim mesmo que eu queria! Será preciso muito capim para esse carneiro? – Por quê? – Porque é muito pequeno onde eu moro... – qualquer coisa chega. Eu te dei somente um carneirinho! Inclinou a cabeça sobre o desenho: - Não é tão pequeno assim... Olha! Ele adormeceu... (SAINT-EXUPÉRY, 2015, p. 15).
Sua impaciência alcançou resultados satisfatórios para o destinatário. Logo, não podemos ignorar a bagagem conceitual pertencente ao piloto, isto é, as experiências acumuladas na infância com desenhos. Entendo com isso que o acúmulo de aprendizagens literárias repercute, sim, no processo de mediação, todavia tentativas sem embasamento teórico podem gerar práticas de leitura meramente para o ensino da gramática.
Concluo salientando que não é minha propositura apontar os professores dos anos iniciais como únicos responsáveis pela construção de um país de leitores, mas evidenciar que, provavelmente, para a maioria das crianças, “o único lugar que o encontro com o livro pode acontecer é na escola, e pela intermediação do professor” (CADERMATORI, 2012, p. 90).
CADERMATORI, Lígia. O professor e a literatura: Para pequenos, médios e grandes. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
RAMOS, Flávia Brocchetto. Literatura Infantil de ponto a ponto. 1 ed. Curitiba: Editora CRV, 2010.
SAINT-EXUPÉRY, Antonie de. O pequeno príncipe. 52. Ed. Rio de Janeiro, Agir, 2015.
Hellen Cris de Almeida Rodrigues
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Amazonas (PPGE/UFAM); Professora da Educação Básica no Colégio de Aplicação na Universidade Federal de Roraima (CAp/UFRR)
E-mail – hellenpedagogia@gmail.com
Concordo! O professor realmente pode promover esse encontro da criança com a literatura. E que não seja um uso alienante e reduzido ao estudo de uma gramática, mas um momento de viver experiências reais e significativas, de construção, reflexão, crítica, enfim, de formação!
ResponderExcluirExatamente Priscila! A leitura pode transcender ao ensino da gramática. Essa leitura (leitura de literatura), chamamos de leitura literária.
ExcluirMuito importante a ênfase ,que base para encontro e descoberta literária nos primeiros anos de infância, o estímulo não só da escola ,mas família é um das fatores essenciais.
ResponderExcluirDe fato, a família pode contribuir muito para a formação de leitores. Infelizmente, nem sempre a criança cresce em um ambiente de incentivo a leitura. Daí, a importância da escola.
ExcluirSuper concordo professora Hellen. Dois pontos importantes nessa escrita "nem todas as crianças se tornarão leitores por obra do professor" e certo de que os "muitos docentes não tiveram as condições necessárias para se tornarem leitores". Recordo que quando criança a professora passava atividades com literaturas que muitas das vezes não estavam disponíveis na escola e por falta de recursos deixava de fazer muitas atividades, mas mesmo assim a professora direcionava a atividade porém não conhecia a realidade de cada aluno. Atualmente me encontro na condição da professora. Mas procura sempre direcionar as atividades literárias com contos ou histórias disponível em PDF.. Assim posso enviar por arquivo ou impressa....
ResponderExcluirExatamente! É preciso buscar desenvolver estratégias de mediação de leitura que dialoguem com a realidade das crianças, sem desconsiderar a qualidade da literatura infantil. Infelizmente, nós não vamos tornar todas as pessoas leitoras, mas o ensino da leitura literária exige comprometimento. Fico feliz por partilhar suas impressões por aqui.
ExcluirUau! Que maravilha de texto, como: "o professor dos anos iniciais e suas inúmeras estratégias para ensinar a leitura da literatura infantil" faz-me recordar de quando aprende a ler, na insistência de uma professora, na aula de reforço! Com isso, observamos a importância do professor somado a sua experiência e embasamento teórico... Parabéns Hellen por nos compartilhar conhecimento e reflexões!
ResponderExcluirEu, como profa dos anos iniciais, busco atuar com bastante comprometimento com os pequenos. Espero marcar a vida de algum deles, assim como sua profa marcou sua vida.
ExcluirInteressante posicionamento, mediações em torno da importância da formação do leitor de Literatura tem sido cada vez mais necessário!
ResponderExcluirExato! Pensar e discutir sobre literatura deveria ser um exercício diário. Obrigada pelo retorno.
ExcluirA contação de história apresenta as crianças ao universo da narrativa e, por isso, pode ser um poderoso instrumento para promover o gosto e hábito à leitura, alem da ampliação das experiências sociais, o desenvolvimento da imaginação, a capacidade de escutar e dar sequência lógica aos fatos, a ampliação do vocabulário. Estou vivendo isso diariamente com meu filho e percebo a importância do universo a leituras nós anos iniciais.
ResponderExcluirFico muito feliz por partilhar conosco suas experiências como mãe e incentivadora à leitura literária. A contação de histórias é a primeira aproximação da criança com universo literário.
ExcluirExcelente Interpretação analógica. Gostei das aproximações e temática, falar sobre leitura literária lendo um clássico. Parabéns Hellen! Um texto muito rico em questões reflexivas. Me fez refletir sobre o meu papel enquanto mediadora da leitura e consequentemente um novo olhar surge para a prática a partir de então. Obrigada pela partilha.
ResponderExcluirEu que agradeço seu retorno! Minha intenção foi provocar os leitores a refletirem sobre o ensino da leitura literária. Entendo essas trocas de experiências como essenciais para o processo reflexivo.
ExcluirExcelente Interpretação analógica. Gostei das aproximações e temática, falar sobre leitura literária lendo um clássico. Parabéns Hellen! Um texto muito rico em questões reflexivas. Me fez refletir sobre o meu papel enquanto mediadora da leitura e consequentemente um novo olhar surge para a prática a partir de então. Obrigada pela partilha.
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