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Memórias Póstumas de Brás Cubas: uma breve incursão psicanalítica



Machado de Assis é o maior escritor brasileiro de todos os tempos. E um dos maiores da literatura em língua portuguesa. Sua obra presta-se a análises as mais diversas, de todos os ângulos, inclusive, claro, a psicanalítica. Reli alguns trabalhos nessa área ao analisar uma crítica saída na semana passada a respeito da versão francesa do meu romance Menino oculto (L'Enfant Caché). O tradutor, no seu prefácio, escreve: "La question est bien de savoir si Aimoré, le personnage, raconte la vérité ou s'il délire sans cesse."* E o narrador de Brás Cubas?
Os poetas bebem de fontes ainda não acessíveis à ciência. Freud remete à noção de conhecimento, saber e verdade transmitidos pela poesia. Verdade, conhecimento e liberdade. No romance Gradiva – uma fantasia pompeiana de Wilhelm Jensen, o jovem arqueólogo associa a imagem da jovem em alto-relevo (nomeada Gradiva) descoberta nas ruínas de Pompeia a Zoé Bertgang, sua namoradinha de infância. Freud, ao analisar a obra (estudo seminal na área da psicanálise) esclarece como a associação Gradiva/ Zoé ressuscita a infância e liberta desejos reprimidos do jovem pesquisador. E o cura de enfermidades que a medicina não conseguira até então curar. O nosso personagem Brás Cubas, do Machado, ao optar por contar a sua história de vida pelo fim - "Algum tempo hesitei abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou minha morte.” - não ressuscita, na verdade, lembranças da infância e desejos recalcados enfim libertos? Descer à cova, o corpo desvelado e exposto à visitação de quem quiser (só vieram 11 pessoas!) não relembra a nostalgia da nudez infantil que ainda não desperta reações de vergonha? Afastar o "início" não é trazê-lo inconscientemente à atualidade para, só então, conseguir contar a sua vida mais objetivamente e libertar-se de um peso? Ou, como analisa Sarah Kofman, a nudez do rei no conto de Andersen ou de Ulisses, da Odisseia, diante de Nausicaa, não revela, com essa nudez ingênua, o desejo imperioso de alterar os limites traçados pela moral? Como Machado sabia tudo, fica a indagação.


* "A questão é saber se Aimoré, o personagem, diz a verdade ou se ele está constantemente delirando."


Godofredo de Oliveira Neto é autor dos romances O Bruxo do Contestado (1996), Menino oculto (2005), Marcelino (Imago) (2008), Amores exilados (2011), A Ficcionista (2013) e Grito (2016), entre outros. Ele também professor Titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.


Outras obras : 
Faina de Jurema (1981)
O nome e o verbo na construção de São Bernardo (1988)
A ficção na realidade em São Bernardo (1990)
Pedaço de Santo (1997)
Oleg e os clones (1999)
Marcelino Nanmbrá: o Manumisso (2000)
Ana e a margem do rio: confissões de uma jovem Nauá (2002)
Menino oculto (2005)
Libertinagem & estrela da manhã (2006)
Crus e Sousa: o poeta alforriado (2010)
Secchin : uma vida em letras (2013)
Ilusão e mentira : as histórias de Adamastor e de Lalinha (2014)
Falando com estranhos: o estrangeiro e a literatura brasileira (2016)


Para saber mais sobre o autor, acesse
https://godofredodeoliveiraneto.wordpress.com/







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