É então uma sensação demolidora (pra cima) poder reler com meus alunos, amigos, as duras letras com que Clarice Lispector escreveu a vidinha de Macabéa e encontrar as duas propostas da leitura feita pelo Professor João Cezar de Castro Rocha: Macabéa, como um dos filhos do casal Fabiano e Sinhá Vitória, de Vidas Secas (Graciliano Ramos, 1938), é vista nas ruas por Rodrigo S. M. (Clarice?) e se converte em personagem deste homem da classe média, que tem mais do que precisa. Neste cenário, Macabéa, herdeira de Fabiano, é ainda parca de palavras, mas é também capim e o escritor precisa ter coragem para: “tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo. Com mãos de dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama”. Macabéa, o capim que está dentro da lama e ao qual só se chega com um esforço disciplinado de autoflagelação.
A segunda proposta é um desafio: como Macabéa escreveria o mundo quando, enfim, for dona de um número maior de palavras? Ensaio: e se toda literatura do não, da fome, da violência, da periferia, se toda vida severina for uma literatura de Macabéas que “vingaram”? “O sertão está em toda parte, o sertão está dentro da gente” e "O Diabo na rua, no meio do redemoinho..." (GUIMARÃES ROSA, 1946). E se Racionais MC’s, Criolo, Emicida, entre outros, forem já esta Macabéa carregada por suas próprias metáforas? Essa última pergunta tem o defeito de pular etapas, pois supõe uma Macabéa armada e produzindo, conscientemente, o nascimento de uma nação. Creio que a hipótese do Professor João Cezar é mais consequente: Macabéa, ainda antes de assumir as armas de uma “Cidade de Deus”, será preta, pobre, periférica, empregada nas casas de Rodrigos, Clarices, Monteiro Lobado. Mas terá palavras e isso já será, como o Caliban de Shakespeare, a tempestade que permitirá algum revide, uma vez que ter palavras é ganhar mundo.
Tudo isso para fazer três comentários sobre esta última leitura de “A hora da estrela”:
1) O livro todo é um congresso de Macabéas.
Mesmo o médico, uma das classes com dignidade do país, que come espaguete italiano, que impiedosamente atende a personagem, em certa medida, também é. Logo, não tenhamos dúvidas de que Olímpico de Jesus Moreira Chaves é também Macabéa, dotado da força que lateja em quem já matou um homem e das malandragens que o tornarão deputado (por exemplo: inventar um nome grande, uma vez que nome grande denota prestígio – ou paternidade; casar com mulher carioca e “loura” oxigenada).
A lição é triste, mas é necessário reconhecer (“fatos são pedras duras”): Olímpicos tendem a vencer muito mais do que Macabéas, porém, para a paz do mundo, ao que parece, Olímpicos, sendo lama, não são capim.
2) Mais uma cartomante para a literatura brasileira.
Outra Macabéa é Madama Carlota, que faz uma pergunta fundamental à personagem: “Vocezinha tem medo de palavras, benzinho?” – e esta pergunta já caberia um artigo.
A consulta é marcada por um longo diálogo no qual a cartomante fala de quem mais importa na cena: ela mesma. Então, descobrimos que, se para “vencer” Olímpico tem a ousadia sem escrúpulos, ela, Madama Carlota, a mulher, mais uma vez nordestina, para “vencer”, tem a prostituição, primeiro como mulher de “vida fácil” (“afinal estava dando o que era meu”), depois como sócia em “uma casa de mulheres”.
Tal qual a cartomante exemplar de Machado de Assis, esta embaralha o futuro e empresta um pouco de conforto à vida inclemente de Macabéa, que, como sabemos, recebe uma previsão de felicidade: “sua vida vai mudar completamente! E digo mais: vai mudar a partir do momento em que você sair da minha casa!”. Ou seja, o risco é que a tragédia de Macabéa permanecesse na casa da cartomante como um carma, uma maldição bíblica. Macabéa como filha de Cam.
Não devemos esquecer que a própria Clarice, intelectual de renome, revela em entrevista que a ideia da cartomante lhe surge de uma consulta que ela mesma fizera. A Clarice de A hora da estrela precisou encontrar em si algo de Macabéa.
3) Essa literatura como um soco: “Os que me lerem, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom.”
Enfim, quando terminamos a leitura, a sensação era de um mal-estar permanente. Era como se tivessem nos retirado de nossa confortável vidinha de condomínios fechados e, bem alimentados, nos deixassem numa das tantas regiões do país em que, sem rede de esgoto, sem luz, sem palavras, Macabéas, Fabianos, Sinhás Vitória, como capim, insistissem em nascer e viver como podem, jogando todo dia na nossa cara a falácia da nossa meritocracia e a certeza de que uma parte significativa de nós não aguentaria ser a plenitude de Macabéa, Fabiano e Sinhás Vitória por alguns dias.
O soco estava dado e era preciso continuar apesar dele. Era preciso esquecê-lo, um pouco que seja, para fazer algo com ele: reconhecer que, ao contrário de Rodrigo, que não existe, nós temos classe social e “mais dinheiro que os que passam fome”, o que faz de nós, de algum modo, desonestos.
Agredidos por Rodrigo (Clarice), ou o vemos como um monstro (mas não temos classe para tanto), ou, desequilibrados, esperamos ser um pouco melhores daqui pra frente.
***
É sintomático que a força desse soco, desse reconhecimento, esgote a autora que falece poucos meses depois da publicação do livro.
Máximo Lustosa é doutor em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense e professor do Estado do Rio de Janeiro. Publicou o livro de contos "céu baixo" em 2014 e está com o segundo para ser publicado em breve: " O livro dos saltos". Há mais de 15 anos mantém o blog Ideias à Deriva http://ideiasaderiva.blogspot.com/
Máximo e Cadu,
ResponderExcluirQue soco! Que coragem! Que desafio! Os "e se..." são tantos e se repetem hoje, novamente, com esse "mal-estar permanente" que nos leva à Macabéa do "cego que nos tromba"... Em Clarice e nossas leituras várias, o "tudo está ligado" parece ser uma constante, não?
Sheila, Máximo traz para nossa atualidade esses "socos" que se perpetuam em nossa história.
ExcluirParabéns, Máximo e obrigado por compatilhar aqui com a gente.
Sheila e Carlos, de repente, fico pensando que há um soco guardado em cada literatura de valor, uma acusação, um apontar o dedo que nos coloca em guarda e exige que tomemos consciência. Tomar consciência é um problema porque obriga uma atitude que pode ser o "deixar pra lá", com suas consequências, ou o fazer algo, com suas consequências. Já vimos o "cego que nos tromba", Macabéa está à porta... Faremos o quê?
ExcluirQue espaço rico, Carlos! Parabéns e obrigado novamente!
Eu não li o A Hora da estrela da Clarice, vi o filme. O primeiro livro que li da Clarice foi o Paixão segundo GH. Li no ano q saiu, pq lembro q eu era secundarista. Logo no início tinha uma frase mais ou menos assim - em mim qualquer tentativa de pensamento esbarra logo com a testa. Um soco. Clarice é um longo soco. A Macabéa já estava aí - pois não?, fico aqui pensando ao ler seu belo texto e me lembrando do filme, da extrema penúria. Ah! As cartomantes. Tenho tantas boas amigas que as consultam. Não tenho está benção de desejo...
ResponderExcluirParabéns, Max!
Obrigado, pela visita ao Blog Sirtes e obrigado pelo feedback. Máximo está de parabéns com seu texto.
ExcluirUm grande abraço e volte sempre aqui no Blog entrelivresethistoires!
"A Paixão segundo GH" foi um dos textos que mais mexeram comigo quando jovem! Sua intensidade de reflexão, para uma ação mínima, é uma potência sobre diversos aspectos e deve ser por isso que todo mundo acentua a característica psicológica da literatura da Clarice.
ResponderExcluirObrigado, tia. Bjs.