Fonte:
Revista Época
Por: Jerônimo Teixeira
26/06/2020 - 0300
Foto: Intervenção em foto de Marc Ferrez (Machado de Assis e bandeira EUA) |
Um dos mais importantes editores do Brasil no século XIX, o francês Baptiste-Louis Garnier negou ao maior nome de seu catálogo a oportunidade de ser lido na Alemanha. Em 1889, uma editora alemã manifestou interesse em publicar as obras de Machado de Assis, para alegria do escritor, que já havia alguns anos vinha estudando a língua de Goethe e Heine. Machado escreveu a Garnier — em francês — para solicitar a liberação de seus livros para a edição alemã. Assegurou que nem sequer esperava compensação financeira: “Já considero uma vantagem ser conhecido em um língua estrangeira que tem seu mercado tão diferente e tão afastado do nosso”. Em sua resposta, Garnier buscou dissuadir o autor com razões pretensamente literárias, repisando o lugar-comum segundo o qual traduzir e trair são sinônimos: “Não ignorais, senhor, que um escritor, por mais bem traduzido que seja, sempre perde sua originalidade em uma língua que não é a sua”. Não, Machado de Assis não ganharia nada em ver seus romances e contos em alemão, argumentava o editor, que, nas rodas literárias cariocas, era conhecido como “Bom Ladrão Garnier” (interpretação malandra das iniciais no nome comercial de sua editora e livraria, a B.L. Garnier). Se o escritor insistisse na ideia, porém, Garnier faria questão de tirar seu próprio ganho: exigiria que a editora alemã lhe pagasse 100 francos por cada título que planejasse traduzir. Machado de Assis desistiu da ideia. Não veria um livro seu em alemão — nem em francês ou inglês, aliás.
A reputação de Machado de Assis no exterior avançou relativamente pouco depois de sua morte, em 1908. É verdade que, sobretudo desde os anos 1950, seus principais romances — em particular, o trio Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro — vêm sendo publicados na Europa e nos Estados Unidos. Em geral, porém, essas traduções têm tido repercussão limitada e vendas pouco significantes. Uma mudança de cenário parece ter se anunciado com a notícia de que duas novas traduções de Brás Cubas chegaram ao mercado americano neste junho. No início do mês, a Penguin, tradicional selo de clássicos, lançou a tradução de Flora Thomson-DeVeaux, brasilianista radicada no Rio de Janeiro, onde trabalha na produtora de podcasts Rádio Novelo. Duas semanas depois, a editora Liveright apresentou a versão feita a quatro mãos pelos ingleses Margaret Jull Costa e Robin Patterson, que já haviam publicado, em 2018, The collected stories of Machado de Assis, livro que traz todos os 76 contos que o escritor recolheu em livro. A edição da Penguin alcançou uma marca única para um autor brasileiro do século XIX: o estoque da edição física esgotou em grandes redes americanas em um dia e já chegou a sua quarta tiragem (a editora não informa o número de exemplares de cada tiragem). Machado de Assis estaria finalmente rompendo os círculos acadêmicos para alcançar essa elusiva e talvez rara figura — o leitor comum? Thomson-DeVeaux disse que, como torcedora do Botafogo, não quer cantar vitória muito cedo. “Mas há bons sinais”, comemorou a tradutora.
Os dois lançamentos somam-se a três versões anteriores em inglês dessa estranha autobiografia que o “defunto autor” Brás Cubas escreveu com a pena da galhofa e a tinta da melancolia. Das outras nove narrativas longas de Machado de Assis — incluindo-se aí “Casa velha”, que o autor publicou, de forma seriada, na revista A Estação, mas só virou livro postumamente —, cinco têm duas traduções em inglês; as outras quatro, apenas uma. E nunca acontecera antes de duas traduções saírem no mesmo ano — aliás, não existe outro livro de Machado de Assis que tenha ganhado duas traduções no século XXI. Há boas razões para Memórias póstumas de Brás Cubas despertar maior interesse dos leitores (ou, pelo menos, editores) estrangeiros. Sua forma muito peculiar, com capítulos curtos nos quais os fatos comezinhos da vida do personagem narrador são entremeados por digressões filosóficas (que pela ironia desautorizam qualquer sistema filosófico) e reflexões morais ligeiras (que são por vezes francamente amorais), guarda um frescor criativo atípico para a ficção de seu tempo. “É muito raro que as referências com que os leitores anglófonos buscam entender Brás Cubas sejam do século XIX”, observou Flora Thomson-DeVeaux. “Ou se vai para trás, para Sterne ou Cervantes, ou para a frente, para Kafka e para o pós-modernismo. Acrescentar Brás Cubas à biblioteca do século XIX acaba por sacudir a prateleira.”
As peculiaridades que hoje encantam leitores estrangeiros intrigaram os críticos brasileiros do século XIX. Publicada em folhetim em 1880 na Revista Brazileira e no ano seguinte lançado em livro, a obra é uma ruptura com a ficção convencional que era praticada até então — inclusive pelo próprio Machado, em livros anteriores como Helena e A mão e a luva. Os prefácios das duas novas traduções observam que a recepção inicial a Memórias póstumas de Brás Cubas foi morna. O historiador Capistrano de Abreu abre sua resenha na Gazeta de Notícias perguntando se aquele livro é mesmo um romance. Outro crítico sentenciou que se tratava de “um livro de filosofia mundana” e que, para ser de fato um romance, faltava-lhe “entrecho”. O leitor atual, formado nas escolas do modernismo e do pós-modernismo, já aceita a ausência de um enredo rigoroso como qualidade. É o caso do escritor americano Dave Eggers, que assina o prefácio da edição da Penguin — um texto de deslumbramento quase pueril ante a descoberta de um obscuro, mas muito inventivo, autor brasileiro do século XIX. “Há uma longa alucinação envolvendo um hipopótamo”, destacou Eggers, maravilhado com o delírio do moribundo Brás Cubas.
A revista The New Yorker publicou antecipadamente o prefácio de Eggers, o que deve ter contribuído para o sucesso inicial da edição da Penguin. Em 1990, a mesma estratégia foi tentada com uma reedição da tradução pioneira de William L. Grossman, originalmente publicada em 1952 com o título Epitaph of a small winner (Epitáfio para um pequeno vencedor): a ensaísta Susan Sontag, figura de proa da intelectualidade de Nova York, escreveu um prefácio que também foi publicado na The New Yorker. A repercussão do livro, porém, decepcionou. Em um ensaio sobre a recepção de Machado nos Estados Unidos, Daphne Patai, professora universitária de literatura brasileira, reproduz a resposta curta e grossa que ouviu quando, nos anos 1990, perguntou a um editor sobre as vendas da tradução de Grossman: “Uma bosta!”. Talvez a imagem meio hipster de Eggers — editor do McSweeney’s, revista on-line de literatura em atividade desde os anos 1990 — consiga atrair mais leitores do que a autoridade intelectual de Susan Sontag (embora Sontag tivesse mais a dizer sobre Machado).
Além de Sontag e Eggers, Machado conta com outros tantos propagandistas de peso na língua inglesa — escritores como Salman Rushdie e Philip Roth e críticos como Harold Bloom. O endosso desses nomes famosos, porém, parece ter sempre repercutido mais no Brasil — onde a opinião de estrangeiros sobre autores nacionais não raro é recebida com encantamento colonizado — do que fora do país. Parte do problema pode estar no relativo isolamento da língua portuguesa. A América hispânica fez um bom trabalho de publicidade literária durante o chamado boom latino-americano, que consagrou a fama internacional de escritores como o mexicano Carlos Fuentes, o peruano Mario Vargas Llosa e o colombiano Gabriel García Márquez (aliás, Cem anos de solidão foi levado ao inglês por Gregory Rabassa, autor também de uma tradução não muito bem reputada de Memórias póstumas de Brás Cubas). O Brasil perdeu essa onda. Quando lançou sua versão em alemão de Memorial de Aires, em 2008, no centenário da morte de Machado, o tradutor Berthold Zilly lamentou a “situação meio marginalizada do Brasil e da língua portuguesa no início do século passado”: “Se Machado escrevesse em francês, inglês ou alemão, certamente teria obtido o Prêmio Nobel”, disse. Servirá de consolo aos brasileiros saber que o Nobel de Literatura, prêmio que começou a ser conferido em 1901, também deixou passar Liev Tolstoi, autor russo que morreu em 1910.
Por afinidade, Machado, leitor de William Shakespeare, Laurence Sterne e Edgar Allan Poe, tem um parentesco espiritual com a literatura de língua inglesa. A crítica americana Helen Caldwell, em O Otelo brasileiro de Machado de Assis (1960) — primeiro estudo sobre Dom Casmurro a chamar a atenção para o fato de que não se pode ter certeza sobre a traição de Capitu —, dizia que os brasileiros possuíam uma “joia que todo o mundo deveria invejar” — a obra de Machado de Assis. Em seguida, em um gentil ato de espoliação, ela sugeria que os temas e enredos de Shakespeare estavam de tal forma entranhados na obra do escritor brasileiro que talvez os falantes do inglês estivessem autorizados a reivindicar Machado para seu time. Caldwell, aliás, foi a primeira a traduzir Dom Casmurro para o inglês, em 1953. Uma segunda tradução foi publicada em 1997 por outro estudioso estrangeiro da obra machadiana, o inglês John Gledson.
No título, as novas traduções diferenciam-se apenas por três letras: Thomson-DeVeaux optou por The posthumous memoirs of Brás Cubas; a dupla Jull Costa e Patterson preferiu Posthumous memoirs of Brás Cubas, sem o artigo “the”. Com soluções diversas, as duas versões dão conta da sutil distinção feita por Brás Cubas entre “autor defunto” e “defunto autor”, jogo de palavras difícil para a língua inglesa. Uma vantagem substancial da edição de Thomson-DeVeaux é o aparato de notas. A tradutora botafoguense levanta todas as alusões e citações literárias feitas pelo defunto autor, traduz trechos do livro que apareceram na Revista Brazileira, mas foram suprimidos por Machado na edição em livro, e contextualiza importantes dados históricos. Um bom exemplo da qualidade dessas notas diz respeito à escravidão, tema que o escorregadio Brás Cubas mantém no subterrâneo da narrativa — e o próprio Machado, neto de escravos libertos, já foi injustamente tido como um escritor que se evadiu do drama moral da escravidão. Pois na cena famosa em que Brás vê o negro alforriado Prudêncio espancando um escravo (sim, o ex-escravo se tornara um modesto senhor de escravos), como uma mal orientada desforra pelos castigos físicos que no passado sofrera nas mãos de Brás Cubas, o texto menciona que o episódio se deu no Valongo. Trata-se do cais onde desembarcavam, no Rio de Janeiro, os cativos trazidos da África. O leitor brasileiro do século XIX entenderia o significado desse local, mas a referência já não é óbvia hoje. O Cais do Valongo, como uma memória recalcada, passou mais de um século soterrado. Só foi redescoberto em 2011, quando se fizeram escavações para reformar a zona portuária do Rio.
Flora Thomson-DeVeaux iniciou-se na tradução machadiana quando verteu para o inglês Machado de Assis: por uma poética da emulação, estudo do crítico João Cezar de Castro Rocha, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). De início, ela imaginara que poderia recorrer a traduções já existentes para as citações de textos de Machado, mas acabou descobrindo que essas versões nem sempre eram satisfatórias para o tipo de leitura minuciosa que Castro Rocha fazia. Daí surgiu o ímpeto para a tradução de Brás Cubas, trabalho que lhe tomou cinco anos e foi sua tese de Ph.D. em estudos brasileiros e portugueses na Universidade de Brown. Castro Rocha disse que a proeza da tradução de Flora Thomson-DeVeaux é a compreensão do que se oculta sob a superfície límpida da prosa — as traduções anteriores tenderiam a “aplainar” a ambiguidade do texto. “Com meios econômicos, Machado explode o sentido. É uma lição que ele traz da literatura inglesa: o understatement”, disse o crítico. “Pela primeira vez em inglês, é possível acessar essa complexidade aparentemente simples de Machado.” A edição atenta às dificuldades de um autor brasileiro, acompanhada de notas cuidadosas, representaria, ainda segundo Castro Rocha, um inovação importante na política editorial dos Estados Unidos, país onde obras traduzidas respondem por uma parcela ínfima dos lançamentos: “Complexidade é um valor de mercado que já se espera da literatura francesa ou alemã, não da brasileira”.
Na resenha que o jornal The New York Times publicou sobre as novas traduções de Memórias póstumas de Brás Cubas, lamentava-se que, nos Estados Unidos, Machado de Assis precisasse ser redescoberto a cada nova geração. Flora Thomson-DeVeaux se disse surpresa com a possibilidade de que uma nova redescoberta ocorra quando seu país natal está imerso na agitação dos protestos antirracistas. “Machado de Assis não é um escritor do grito, mas do riso sardônico discreto”, disse. Que o riso ecoe para além de seu país de origem.
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