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Página 1 - O dia em que conheci Machado de Assis - um relato pessoal sobre a experiência de leitura.



A comemoração do aniversário de nascimento de Joaquim Maria Machado de Assis me fez lembrar de um episódio da minha infância.A leitura sempre fez parte da minha vida. Meus pais frequentemente estimulavam a leitura em casa, mas a meu hábito de viver rodeado de livros surgiu por influência da minha avó materna, Dona Alda, com quem eu lia as histórias de Monteiro Lobato e uma dezena de outros livros. Frequentador assíduo da Biblioteca Municipal de Jacareí - SP, na época localizada bem próximo da Igreja Matriz, eu me sentia em casa naquele lugar. Eu conhecia todos os bibliotecários, que gentilmente me avisavam quando algum título mais concorrido estaria disponível. Lembro perfeitamente do ritual para ingressar naquele local: primeiramente todos os materiais e bolsas eram deixados em um armário. Em seguida, munido de papel e caneta, pois era nossa a tarefa de anotar o número e a estante onde estava guardado o livro escolhido, enfrentávamos o grande gaveteiro de metal repleto de pequenas fichas datilografadas. Toda as vezes que abríamos um deles, era inevitável sentir um cheiro muito característico de papel envelhecido e manuseado. Devido à grande quantidade de livros que eu tomava emprestado, eu normalmente completava a minha ficha de empréstimos rapidamente, pois eram os meus livros e os da lista da minha avó. Semanalmente a rotina era a mesma, eu saí da escola, passava na Biblioteca, entregava alguns e tomava emprestado vários outros. Minha paixão por aquele lugar era tão explícita, que ao invés de ter o direito de retirar de três ou quatro exemplares, minha cota era praticamente o dobro. 
Alguém ainda se lembra dessas experiências em uma Biblioteca antes do advento das tecnologias ultra modernas, como smartphones, apps, computadores e Kindles ?


Sou curioso por natureza. 
Existia na casa dos meus pais, no interior de São Paulo, uma estante com uma modesta coleção de livros. Capas coloridas, livros técnicos, literatura mundial - uma belíssima edição verde com letras douradas de Dom Quixote.
Meu pai era bem ciumento com sua coleção, e hoje em dia, compreendo de onde vem todo o meu zelo com os meus luvros, mas isso é história para um outro momento. 
Revenons à nos moutons! *
Em uma dessas tardes de "descobertas literárias", uma coleção de cinco livros, capa dura, revestidos de um material parecido com couro vinho e letras douradas me chamou a atenção. Na capa de cada livro havia um uma impressão do rosto de um senhor barbudo, que usava óculos, semblante fechado, bem acadêmico.
Minha idade? Acho que eu devia ter uns dez ou onze anos.Tenho apenas gravado na minha memória, a vaga lembrança de estar sentado no chão frio, rodeado pelos "escolhidos" daquela tarde.
- Casmurro - que nome estranho.
A estranheza desse nome me impulsionou a abrir a primeira página do livro.


Dom Casmurro foi o primeiro livro "sério" que eu li. Serei muito sincero: que tentei ler.
Na época, sem entender as peculiaridades da escrita machadiana, passei alguns meses carregando aquele livro para todos os cantos, na hercúlea tarefa de terminar a leitura. Acho que pulei algumas passagens... não me lembro muito bem.
Machado ainda não fazia parte do meu mundo onde vagavam personagens como Pedrinho, Visconde de Sabugosa, Narizinho e Emília. O autor também não dividia a pequena estante do meu quarto com os meus livros preferidos:  A Serra dos dois meninos, Barcos de papel, O caso da borboleta Atíria, A Ilha Perdida, O escaravelho do diabo, Éramos seis , Sozinha no Mundo, O rapto do garoto de ouro e tantos outros títulos que faziam parte da Coleção Vagalume, sucesso da literatura infanto-juvenil nos anos 70 e 80.
Machado de Assis foi meu primeiro desafio literário. 
Simbolizava o ritual de passagem, na minha pretensão de ser mais erudito. 

Dias depois, terminei a leitura. 
- O que você achou?
- Interessante.

Engraçado como utilizamos o adjetivo interessante na tentativa de verbalizar nosso desconcerto quando não sabemos  expressar nossa opinião. Esvaziamos completamente o sentido da palavra de forma tão mesquinha. 
Eu não tinha gostado de nada. Daquela leitura, eu só tive uma única certeza: "Casmurro" era uma palavra estranha!
Quanto à narrativa, fiquei apenas na camada superficial da intriga, no velho e batido dilema da traição ou não de Capitu. 
Eu ainda não estava preparado.


- Carlos, onde está o livro do Machado de Assis que você pegou na estante do seu pai?
.
.
.

E assim, o livro voltou para seu lugar,  a  velha estante.

 
Já na adolescência, resolvi encarar novamente meu velho amigo Machado. Todo mundo fala tão bem de você!
Logo nas primeiras páginas, percebi como tudo começava a fazer sentido. Que sagacidade, quanta ironia, quantos detalhes haviam passado desapercebidos pelo simples fato de não ter na minha bagagem de vida intelectual a maturidade necessária para compreender a genialidade do autor. 
Maravilhado, devorei todos os outros quatro volumes da coleção.
Além de Dom Casmurro, outras obras do autor que me marcaram profundamente foram: Memórias Póstumas de Brás Cubas e Esaú e Jacó. Dentre meus contos preferidos estão: O alienista (1882), Missa do Galo (1893), Teoria do Medalhão (1881), A cartomante (1884) e a Igreja do diabo (1884) e Pai contra mãe (1906)


Quase chegando ao fim dessa minha história, tenho uma última coisa a dizer sobre essa minha primeira experiência com a leitura de Machado de Assis, ela me faz pensar no livro Como um romance (Comme un roman) de Daniel Pennac. Ensaio sensível sobre a leitura, ele mostra de forma inteligente e simples como a magia do ato de ler fica perdida quando o prazer é trocado pela obrigação. Extremamente revelador, Pennac demonstra alguns equívocos cometidos por alguns pais e educadores durante o processo de incentivo à leitura aos jovens.
Sugestão de leitura a todos que trabalham com livros, literatura, ou que simplesmente gostam de ler. 

Destacarei aqui os 10 direitos do leitor, segundo o autor:

O direito de não ler.
O direito de pular páginas.
O direito de não terminar um livro.
O direito de reler.
O direito de ler qualquer coisa.
O direito ao bovarismo (doença textualmente transmissível).
O direito de ler em qualquer lugar.
O direito de ler uma frase aqui e outra ali.
O direito de ler em voz alta.

Sem saber, lá no passado usei meus direitos de leitor ao enfrentar pela primeira vez o nosso gênio da literatura nacional.


27 de junho 2020 - 13:07
Hoje, ao ligar para minha mãe e perguntar se a tal coleção ainda existia, ela me deixa ciente que após algumas reformas, a maioria dos livros antigos do meu pai foram doados, mas que ainda restava na antiga estante de livros do meu pai a minha coleção Vagalume e um exemplar da coleção Machado de Assis - Memórias Póstumas de Brás Cubas. 



 Memórias Póstumas de Brás Cubas
Exemplar da Biblioteca do meu pai, Paulo. 
Crédito da foto: Dona Silvia, minha mãe.


- E assim se foi o Casmurro. 
- Onde ele está ?
- Não tenho ideia. 
- Só espero que ele esteja bem.



Páginas Avulsas 1
27 de Junho de 2020



* Voltando ao que vinha dizendo ... / Voltando ao assunto ...



Livros citados no post:

Coleção Obras Selecionadas
Machado de Assis
Editora Egéria Ltda - São Paulo
1ª edição Junho 1978


Edição em francês::
Comme un roman
Éditions Gallimard
1992

Edição em português:
Como um romance
Editora: Editora Rocco Ltda.
1993

Coleção Vagalume 
Editora Ática
para conhecer um pouco mais acesse 



Indicação de leitura:

Obra completa de Machado de Assis 
Volume 1:  uma fortuna crítica, organizada pelo professor Samuel Titan Jr, com textos de críticos escritos antes e depois da morte de Machado de Assis.
Volume 2: todos os livros de contos publicados pelo autor em vida, além da primeira parte de seus contos avulsos.
Volume 3: A segunda parte dos contos avulsos e a produção poética, teatral, miscelânea e correspondência de Machado de Assis.
Volume 4: Todas as crônicas publicadas em livros, jornais e revistas.
Editora Nova Aguilar

Por um Novo Machado de Assis
Ensaios
John Gledson
2006
Companhia das Letras












Comentários

  1. Que incrível este compartilhamento.

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  2. Lindo relato filho!! Eu e seu pai voltamos no tempo.

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  3. Olá Carlos, não sei se se lbra de mim, mas te conheci bebê rsrs, gostei muito do seu relato, li Don Casmurro e Memorias Postumas de Brás cubas por obrigação, na escola, achei um porre, mas você me despertou vo tade de reler, ou melhor ler de verdade, obrigado!!!

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    Respostas
    1. Olá Nadir, quanto tempo! Claro que eu me lembro de você.
      Fico muito agradecido pelo seu comentário. Isso mesmo, dê uma nova chance a ele! Mas como falei , nós leitores temos todo o direito de não gostar, de fechar o livro e de passar para outra leitura. O que não podemos é viver sem literatura, sem a arte.
      Depois passa aqui e conta como foi a experiência de "encarar" Machado de Assis pela segunda vez!
      Um grande abraço!

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  4. Respostas
    1. Fico feliz que tenha gostado, Márcia. Obrigado pela visita. Apareça sempre para trocarmos ideias sobre livros, literatura , leituras ... Um grande abraço!

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  5. Maravilhoso relato! Leve e muito gostoso de ler!

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    Respostas
    1. Fico feliz que tenha gostado, Paula. Obrigado, pelas palavras !

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  6. Chicão das Couves7/07/2020 12:52 AM

    Poderia ter aproveitado para falar como essas edições trucidam textualmente os 'clássicos' brasileiros e ter recomendado uma edição melhor - como a edição crítica dos anos 70, as boas reedições da Carambaia, da Ateliê e da Penguin (que resolvem muitos problemas de crítica textual das sucessivas edições). Link para edição da Ática (cheia de problemas e sem qualquer rigor filológico) foi infame. A crer nas edições referidas, vc ainda não leu "Dom Casmurro".

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