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Diário - Lúcia Facco

 


 

Para minhas “companheiras eróticas” *


Uma luz branca, outra branca, uma amarela, uma branca, um intervalo, depois tudo de novo: branca, branca, amarela, intervalo... cada vez mais rápido. Mais rápido, mais rápido... Os olhos atentos acompanhando a seqüência de luzes no túnel do metrô. Seu pensamento tentando inutilmente se concentrar naquela ordem, tentando perceber alguma mudança: branca, branca, amarela, branca, intervalo... até que só viu um grande escuro e depois a luz do dia. Mas é impossível prestar realmente atenção às tais luzes e ao sol que depois de dias de chuva finalmente aparece suave, mas quente o suficiente para fazê-la tirar o casaco, não sem antes reparar na blusa que está usando. Podia ser aquela furadinha nas costas (malditas traças!) e aí o jeito seria agüentar o calor. Não é. Está vestindo a amarela que ganhou de aniversário da Márcia. Márcia, Márcia, mar se amar, se amar, se amar. Culpa dela também. Uma daquelas amigas que povoam as suas fantasias e a quem a sua buceta reage violentamente cada vez que ela toca os seus cabelos. As mãos da Márcia deslizando nos fios lisos e amarelos que nem o trigo (o marido lhe dissera uma vez, em um dos seus raros momentos de suavidade) e a sua buceta ficando molhada, molhada, molhada, se contraindo até doer. Sempre fica constrangida achando que a outra vai perceber, mas ela diz que não se incomoda nem um pouco em penteá-la, que seus cabelos são macios, e coisa e tal. Vive perguntando: “você não vai querer que eu enrole seus cabelos?” Às vezes ela acha que a amiga sabe e faz de propósito e conclui que talvez ela também sinta alguma coisa parecida. 

Finalmente tira o casaco e sabe que não é só por causa do sol. Esse calor vem se infiltrando no seu corpo há dias, aumentando cada vez mais. Acha que vai pirar. O trem pára e ela encosta a testa no vidro embaçado. Depois sente nojo. Quantas cabeças estranhas haviam sido necessárias para deixar o vidro imundo daquele jeito? Imediatamente se apruma e o trem recomeça a andar. Lento, depois mais rápido, mais rápido. E a vibração lhe provoca novamente as sensações que quer ignorar sem sucesso. Sabe que no meio daquele vagão de metrô, na tarde triste de fim de outono, só ela está sentindo aquilo. Olha disfarçadamente para os rostos. Principalmente os das mulheres. Não detecta, em nenhum deles, qualquer expressão de prazer. Deve estar doente. A vibração no banco sempre faz com que ela sinta entre as pernas uma umidade, um fluxo que lhe deixa com vontade de gozar. Mas seria impossível gozar naquele trem cheio de gente. Gozar sem sentido, sem um estímulo maior que alguns solavancos. Sentir essas coisas é aflitivo mas delicioso. Como comer uma torta alemã quando se está de dieta. Uma delícia, mas invariavelmente acompanhada de culpa. 



* * * * * * * * * 



Cheguei em casa cedo. A greve da Universidade parece que não vai acabar nunca mais. Já comecei a estudar tarde. Se continuar neste ritmo, vou acabar quando tiver idade para me aposentar. Tomei um banho, jantei e fui até a casa do André. Levei o coitado para o quarto e pedi que ele me chupasse. Fechei os olhos e imaginei que era uma mulher desconhecida que estava ali. (Engraçado, nunca pensei que, nessa idade, eu fosse me interessar por mulheres). Depois pensei que deveria ser a mulher barbada do circo, pois o André estava com aquela barba de dois dias me arranhando as coxas. Comecei a rir, me desconcentrei. O tesão se foi. Levantei da cama rápido, antes que ele me perguntasse alguma coisa, e saí do quarto. Usei a mesma desculpa que já estava gasta, esfarrapada. Falei da culpa, falei que se meus filhos soubessem, provavelmente ficariam revoltados, sentiriam como se eu estivesse traindo o pai deles. Não consigo transar, falei. Fiquei viúva não tem nem dois anos, blá, blá, blá... Espremi umas lágrimas muito fajutas e fui embora. Esse estado de coisas é muito complicado para o André. Eu me sinto “acesa” o tempo todo. Sempre que nos encontramos eu o arrasto para qualquer lugar onde a gente possa se esfregar. O problema é que eu nunca fico satisfeita. Nem ele. Nunca vou até o final. Nunca gozo. Falta sempre alguma coisa. 

Voltei para casa e fiquei vendo TV. Aquela chatice de sempre. Os meninos ainda não chegaram. Meninos... Até parece. Um com vinte e dois, outro com dezenove. Estou realmente ficando velha... Preciso urgentemente falar com aquele carinha do computador. Já tenho quase a grana toda. Estou doida para ter Internet em casa. Pelo menos eu não me sentiria tão sozinha. Além do mais, vai me ajudar nos trabalhos desta faculdade tardia. 



* * * * * * * * * 



Eu já transei com mil mulheres. Qual é a diferença entre uma lembrança e uma fantasia? Depois que vivemos uma experiência, quando ela se torna passado, vai para o mesmo nível da fantasia. Ambas (sobre)vivem na cabeça, na imaginação. A segunda, inclusive, tem uma vantagem sobre a primeira. Ela ocorre como queremos. Pode ter contratempos, falhas ou pode simplesmente ser perfeita. Na falta de experiências reais, elaborei cuidadosamente todas as minhas fantasias sexuais com mulheres. Transei com louras, morenas, mulatas, ruivas, negras, gordas, magras, até com um travesti com um par de seios e um pinto enorme, descoberto apenas no quarto de um hotel de quinta no centro da cidade. Dessa vez, inclusive, apesar da transa ter sido satisfatória, fiquei imensamente decepcionada. Tenho sentido uma enorme atração por todo o corpo das mulheres, mas especialmente pela buceta. A minha, como já observei várias vezes, tem vida própria. Ela se manifesta nos momentos mais inadequados. Me fascina seu cheiro, suas reações, seu sabor. Apesar da minha falta de experiências reais, já me masturbei muito olhando as fotos nas revistas que meus filhos “santinhos” escondem no fundo do armário. Olho para elas, examino atentamente seus formatos (são todas diferentes umas das outras) e imagino que cada uma também deve ter um gosto especial, particular, único. Mas como ia dizendo, quando vi surgir, entre as pernas da loura cheia de curvas, aquele pintão, fiquei chateada, pois não poderia fazer o que mais me dá prazer: passar a língua devagar por toda a buceta, de olhos fechados, tateando, percebendo seu contorno, seu gosto, sentindo que com meus movimentos a faço ficar cada vez mais molhada, até fazê-la gozar na minha boca. 

As minhas fantasias também têm uma característica interessante: como boas memórias que são, possuem cronologia correta. Não sofrem alterações. Todas estão devidamente registradas em meus diários, bem como esta pequena explicação. Aliás, acabo de perceber que eu me entreguei. Já que isto é um dos meus diários, todos saberão que os meus casos são inventados. Mas todos quem? Só quem os lê sou eu. Nunca vou deixar que ninguém mais os leia. Caso contrário podem achar que eu sou uma maluca. Uma lésbica maluca. 



* * * * * * * * * 


Finalmente, depois de economizar como uma avarenta, consegui colocar a Internet aqui em casa. No meu quarto. Também, deixei de fazer uma porção de coisas que eu queria muito. Mas valeu a pena. Agora meu mundo realmente cresceu. Não escrevo há um tempão porque estava direto na Internet. Estou absolutamente viciada. É um lugar onde estou sozinha e ao mesmo tempo conversando com um monte de gente, vendo o que as pessoas têm a dizer sobre vários assuntos. Estou fazendo pesquisas sobre tudo o que eu tinha curiosidade de saber. Comecei a procurar informações sobre o lesbianismo. É fascinante. Consegui vários títulos de livros sobre o assunto. Agora não dá para comprar, mas estou anotando. Será que vou ter coragem de entrar numa livraria e pedir um desses livros? Aposto que o vendedor vai começar a gritar: “Olha! Ela é sapatão!” É esse tipo de coisas que eu fico pensando. Vê se pode... 

Entrei em alguns chats de lésbicas e comecei a conversar. Há todos os tipos de pessoas! Existe uma moça, em especial, que ficou conversando comigo uma noite inteira. No dia seguinte fui trabalhar bêbada de sono. O nome dela (ou melhor, o nick) é Mel. Lindo, né? Ela parece ser muito interessante. Pena que more longe. Pensei até em tentar me encontrar com ela, mas fiquei com medo. Vou fazer o quê? Ela disse que não é muito bonita, mas e daí? Foda-se se ela não é bonita! O caso é que tenho pensado muito nela. Para ela eu tenho a coragem de dizer um monte de coisas que não digo a ninguém. Sempre escrevo aqui, mas não é a mesma coisa. Neste espaço eu só posso interagir comigo mesma. Lá é diferente. Eu escrevo mas vejo também aparecerem mensagens que outra pessoa escreveu. Como não conheço quem fala, é meio mágico. É como se meu subconsciente me enviasse mensagens, já que a Mel me diz tudo o que eu penso e gostaria de ouvir. Ela me disse que a sexualidade é algo único, exclusivo e diferente para cada pessoa, que nada é pecado e que a gente deve se dar o direito de tentar tudo que possa nos fazer felizes. Adoro ouvir isso para variar, pois aqui em casa meus filhos sempre fazem de tudo para me convencer de que só existe um caminho, uma possibilidade, e o resto está errado. Certa vez resolvi argumentar e perguntei quem tinha estabelecido o que era “o certo”. Eles me responderam: “Todos, ora!” Depois de uma resposta dessas, nem discuti mais. Não adianta. São iguais ao pai. Sempre tão certos, prontos para julgar e condenar. Fodam-se! Aqui sempre me sinto estrangeira, inoportuna. 



* * * * * * * * * 


A cada vez que eu e Mel nos falamos eu fico absolutamente maluca. A gente conversa sobre várias coisas, mas ela também fica falando um monte de sacanagens. Ontem ela disse que havia se masturbado pensando em mim. Como pode se ela nunca me viu? Nem mesmo uma foto. Quando fui deitar, enfiei os dedos lá no fundo da minha buceta, já que a dela não estava ao meu alcance, depois os lambi bem devagar, suavemente, saboreando o líquido sem-nome, pensando na buceta da Mel, que eu nunca tinha visto (nem a Mel, nem a sua buceta), até que gozei forte. Será que a dela é doce? Tem gosto de mel? 



* * * * * * * * * 


Eu terminei o namoro com o André. Não agüentava mais ficar com ele pensando em outra pessoa. Quer dizer, na verdade nunca pensei realmente nele. Eu gosto dele como amigo. É uma boa companhia, é bonzinho, mas não dava mais. Ele ficou triste, nós ficamos tristes, chorei muito, mas passou. Foi melhor assim. Hoje nós saímos. Fomos ao cinema e depois comer qualquer coisa. Ele ficou querendo chegar perto demais, mas eu falei que se fosse para continuar assim eu não sairia mais com ele. Então sossegou. Acho que podemos ser amigos. A Márcia falou que isso não é possível e que ele só concordou em sair como amigo porque tem a esperança de voltarmos a namorar. Sei lá. Vamos ver... 



* * * * * * * * * 


Estou uma pilha de nervos. Depois de dois meses de chove-não-molha resolvi encontrar a Mel. Inventei a maior história para os meus filhos, para justificar a minha saída em um sábado à noite. Eles enchem o meu saco com essa marcação cerrada. Nunca posso falar com eles sobre as coisas que sinto, que penso. Sobre meus sonhos. Para eles está bem assim. Tenho um empreguinho e um namorado respeitador com quem eu troco no máximo uns castos beijos (ainda nem contei que terminamos). Vou me casar novamente, de preferência daqui a uns dez anos, e se eu agir corretamente vou cuidar dos netos que eles vão me dar e ficar gorda, sem nenhuma vaidade, assexuada, pensando apenas no bem-estar da família. Eu vou é terminar a faculdade (se as porras da greves permitirem) e melhorar a minha vida. Quero sair dessa mediocridade. Me sinto completamente sozinha na maioria das vezes. Diferente. Eu e ela: minha buceta que está cada vez mais independente, me levando a fazer coisas que eu não faria se ela não insistisse. Ver a Mel, por exemplo. Tive que pedir à Vanessa para dizer aos meus filhos, caso eles perguntem, que vou dormir na casa dela. Acabei de me ferrar de vez. Estourei o cartão de crédito para comprar uma roupa bacana. Quero que ela goste de mim. Me ache atraente. Só não sei o que vou fazer com isso depois. 



* * * * * * * * * 


Branca, amarela, branca, branca, intervalo, branca, amarela, branca, branca, intervalo. Aposto que ninguém nunca reparou que a ordem das luzes do metrô se inverte. Eu reparei, mais uma vez sentindo a minha buceta (estou quase dando um nome a ela) brincar com os solavancos do trem. Nervosa, ansiosa. Marquei com a Mel na Estação Flamengo. Longe pra cacete. Fiquei mais de 40 minutos naquela agonia. Ela quase gozando, mas aí o trem parava e pronto. Já era. Um monte de vezes. Finalmente desci do trem afogueada. Olhei à volta procurando. Ela estava lá. Uma menina de uns vinte e poucos aninhos. Branquela, alta, óculos de aro preto (cara de intelectual), cabelos ruivos, bem curtos, penteados para trás com gel. Sorry pelo clichê, mas a boca tinha cor de cereja. Parecia andrógina e vestia algo indefinido, provavelmente comprado no Mercado Mundo Mix. Enfim, uma garoteca da Zona Sul, com aquela pinta de quem sabe tudo. 

Me senti mal. Pobre, mal vestida, um pouco acima do peso diante daquele manequim 38 e velha. Totalmente inadequada. Ela pareceu nem notar. Sorriu. Usava aparelho! Beijos no rosto e a proposta: “Vamos pegar o trem até a Estação Glória? Lá descemos, bebemos alguma coisa e depois vemos o que fazemos.” Eu teria dito não. Teria desistido de tudo. Ela era muito decidida, muito segura para mim. Eu me sentia olhando de baixo para cima e essa sensação de inferioridade estava me incomodando imensamente. Acontece que eu estava ali não por mim, mas por ela: a Bebê (foi o nome ridículo que me veio naquele momento). Quando atravessávamos para o outro lado da Estação eu só pensava se a buceta da Mel também teria cor de cereja. Ao entrarmos no trem eu falei que achava melhor irmos diretamente para um lugar em que pudéssemos ficar sozinhas. Ela me olhou com tanta surpresa que eu fiquei pensando se eu parecia tão idiota a ponto de nunca ser capaz de fazer uma proposta daquele tipo. Depois deu aquele sorriso cibernético e disse: “Claro que sim!” 

Descemos na Estação Glória mesmo (eu deveria ter desconfiado que havia algum motel por ali) e caminhamos até uma ladeira. Havia na esquina um boteco cheio de gente e eu pedi para pararmos e tomarmos uma cerveja. A seco eu não conseguiria. Enquanto eu bebia, observava as pessoas que lotavam o bar. Os homens olhavam para as minhas pernas e para a Mel. Eu sabia que todos sabiam que eu estaria, dali a alguns momentos, com o rosto afundado entre aquelas coxas brancas e finas buscando o que eu viera de lá da puta-que-o-pariu encontrar. Os olhares me acusavam: “Coroa sapatão! Sapatão!” Foda-se! Agora eu não voltaria para casa nem que me matassem. Não sem antes provar cereja com mel. 

Ela pagou a cerveja, pegou minha mão e me puxou para a rua. Estava chuviscando e minha mão estava gelada. A mão dela, seca e quente, me deu uma sensação boa, que durou pouco, pois ela logo a largou, fazendo com que eu me sentisse mais sozinha do que nunca. Acho que ninguém nunca ficou tão só quanto eu naquele momento. Andamos alguns metros, até que ela parou, me olhou fundo, como para conferir se eu ainda queria e eu pude constatar que seus olhos eram verdes. Eu ainda queria. Entramos. Eu estava tão tonta que não ouvi uma palavra sequer que Mel trocou com o homenzinho da portaria. Quando passamos por ele, senti seu olhar gelar a minha espinha. Ou era impressão? Ela abriu uma porta pintada de verde com aquela tinta a óleo super brilhante e me tocou as costas tão de leve que senti um arrepio. 

Quando fechamos a porta verde-alface-brilhante, lembrei vagamente de uma música brega que a Márcia adora, e que fala alguma coisa como “deixar o mundo lá fora”. Não nos falamos. Não precisava. Tudo havia sido dito, em tantas horas mediadas pelos monitores. Beijei a boca-cereja, passei a mão nos cabelos curtos colados com aquele gel e tive uma sensação desagradável. Mas passou quando ela se deitou na cama, tirou a calça, a calcinha e abriu as pernas para mim. Nas madrugadas no ICQ eu havia lhe falado, várias vezes, que queria que fosse assim. Bebê (não consigo pensar em outro nome para ela, mas continuo achando esse ridículo) se contraiu e inundou a minha calcinha nova. Ajoelhei no chão (lembrei daquela expressão: É de se comer ajoelhado!), olhei bem. Tinha os pêlos ruivos, brilhantes. Passei a mão. Macios... Escondiam a pele que era cor de cereja, afinal. Fechei os olhos, cheguei perto bem devagar, sentindo o cheiro doce, novo, diferente, único. Beijei, depois separei os lábios meus e os dela e lambi. Maravilhoso! Perfeito. Penetrei a sua buceta com a minha língua, apertando a sua bunda com as mãos agora quentes. Não tenho idéia de quanto tempo durou essa atividade. Deve ter sido algo bem demorado, pois horas depois ainda sentia o cabresto da língua (é esse o nome daquela pelinha?) dolorido pela ginástica inusitada. Gozei imaginando que a penetrava com o meu clitóris, misturando os dois líquidos sem-nome, os dois gostos diferentes, formando um terceiro, que depois eu lamberia, como agora lambia esse. 

Estava cansada, mas não parei até que ouvi Mel gemer alto, apertando a minha cabeça com as pernas contraídas, quase me sufocando. Acabou. Estava feito. Era assim, então, estar com uma mulher. Ao contrário do personagem do conto “Sargento Garcia”, de Caio Fernando Abreu, eu sentia uma alegria louca. Uma vontade de sair nua e dançar na chuva que agora caía forte lá fora, conjugando, em um ato, todas as proibições possíveis: ir na rua pelada, tomar chuva e trepar com mulher. Pensando nisso, comecei a rir. Gargalhar mesmo, imaginando as caras dos meus filhos e do André, se me vissem naquele estado. Nua na cama com uma garota ruiva, de buceta cor de cereja. 

Sorri para ela e abri a janela do quarto que dava para a rua. Lá embaixo, abrigado da chuva sob uma marquise cinza-chumbo, havia um grupo animado de travestis, entre os quais um louro cheio de curvas como o da minha fantasia número sei-lá-qual. Naquele momento, se tivesse coragem, teria acenado para que ele subisse para se juntar a nós. Mas depois lembrei que isso poderia arruinar de vez a minha fantasia. Varrê-la com um “furacão de realidade”. 

Com a pele arrepiada pelo vento frio e molhado que vinha de fora, fechei a janela e deitei ao lado da Mel. Ela pegou fôlego para falar, mas eu sacudi a cabeça, dizendo que não. Não queria palavras. Eu já falei e ouvi demais por toda a minha vida. Naquele momento eu queria exercitar todos os outros sentidos que não o da audição. Queria ver, cheirar, provar, tocar. Toquei Bebê e ao trazer a mão para perto do rosto, vi que havia ficado menstruada. Observei fascinada, como se fosse o sangue do meu cabaço. Ele já não estava lá há muitos anos, mas só agora eu não era mais virgem. 

Passei os dedos nos lábios, provei cautelosamente o gosto da minha virgindade que tinha acabado de ir embora, levando todos os meus medos, minhas inseguranças, minha sensação de inadequação ao mundo. Eu estava mais viva que nunca, feliz, corajosa. Deus existia e estava me olhando, dando uma risada de satisfação pela felicidade de sua filha. 

Reparei, então, que Mel tinha um piercing no umbigo. Uma carinha sorrindo, verde neon, brilhando na fraca luz do abajur ao lado da cama. Todos conspiravam a favor da minha alegria. Devolvi o sorriso para a carinha, deitei e dormi. Acordei no dia seguinte antes das sete da manhã. Me vesti devagar, saí deixando Mel dormindo com a sua boca-cereja entreaberta, mostrando o brilho do aparelho. Na rua havia um sol ainda fraquinho, mas que prometia calor. Fechei os olhos, deixando que ele aquecesse meu rosto. Senti seu cheiro amarelo como o trigo. Bom... Pensei que um dia vou a um campo de nudismo e me deitarei pelada, de pernas bem abertas, para deixar que o sol aqueça Bebê. Ela vai gostar, tenho certeza. 

Fiquei vagando pelas ruas vazias àquela hora de domingo. Parei em uma padaria, tomei café e comi uma broa de milho quentinha. Não queria ir para casa. Era um mundo, agora mais deprimente, que tolhia, cerceava todos os meus movimentos. Mas devia. Dez horas da manhã de um domingo de sol, peguei um ônibus para o subúrbio, que me deixou quase na porta de casa. Caminhei devagar e antes de chegar vi o André lavando o carro. Acenei e segui em frente, então quase correndo. Não queria falar com ninguém. Tirar as sensações da noite. Preferia o silêncio. Cheguei em casa e me tranquei no quarto. Feliz da vida. 



* * * * * * * * * 


Uma luz branca, outra branca, uma amarela, uma branca, um intervalo, depois tudo de novo: branca, branca, amarela, intervalo...cada vez mais rápido. Mais rápido, mais rápido... Tenta se concentrar nas luzes para ver se distrai Bebê. Não adianta. Qualquer dia vai gozar em pleno metrô e aí vai morrer de vergonha. Ainda bem que a greve acabou e a esta hora o metrô está quase vazio. 

Chega em casa exausta. Toma banho, janta e se deita. Fica se lembrando: já transou com mil mulheres: louras, morenas, mulatas, ruivas, negras, gordas, magras, até com um travesti com um par de seios e um pinto enorme, descoberto apenas no quarto de um hotel de quinta no centro da cidade. Transou também com uma garota bem mais nova que ela, que conheceu na Internet. Ruiva, com cara de intelectual. Foi uma noite perfeita. 

Levanta novamente e pega o caderno que faz de diário. Começa a escrever, maquiando suas experiências, deixando-as com aparência de fantasias de viúva cheia de imaginação. É necessário. Um dia, há alguns meses, viu, ao sair do banho, pela nesga da porta do banheiro, seu filho mais velho guardando silenciosamente este mesmo diário no “canto secreto” da sapateira, atrás da caixa das sandálias vermelhas de salto alto. 


Lúcia Facco

Mestre em Literatura Brasileira e Doutora em Literatura Comparada pela UERJ
Escritora e crítica literária



Recebeu os prêmios Arco-Íris de Direitos Humanos – categoria Literatura – em 2004 pelo livro As heroínas saem do armário: literatura lésbica contemporânea.
e Alejandro Cabassa, de melhor livro de contos de 2003, concedido pela União Brasilei-ra de Escritores para o livro Todos os sentidos: contos eróticos de mulheres.


*Este conto faz parte do livro Todos os sentidos: contos eróticos de mulheres, organizado por Cyana Leahy, publicado em 2003 pela C. L. Edições e ganhador do prêmio Alejandro J. Cabassa da União Brasileira de Escritores como melhor livro de contos de 2004. 

Comentários

  1. Ficou linda a arte! Obrigada, querido!

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  2. Uau! Parabéns, Lucia. Um conto da mais alta qualidade literária.

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  3. Que conto heim amiga!!!❤️

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  4. Um conto instigante onde as fronteiras entre real e imaginário se misturam, e uma crueza deliciosa toma conta de toda a leitura. Parabéns, Lúcia. Quero o livro já!

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  5. Qur texto bem construído, Lúcia! Gostei muito! Será que o filho achava que era uma fantasia da mãe? Para pensar... Acho que ele sabia a verdade. Parabéns! Bjs, Ana Cristina

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  6. Parabéns Lúcia, ótimo livro a literatura é uma das melhores coisas existidas nesse mundo! E Esse Seu Livro É Muito Bom! Parabéns!

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