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Diário - Solange Rebuzzi





Rio, 14.07.2020


Rios e árvores no extremo norte do país
e um sopro alto na sombra da sumaúma.
Uma linha longe do horizonte largo
palpita no coração da floresta.


Os índios protegem os corpos
em pequenas embarcações
por onde correm as margens
com o barro que escorre fresco.


Apenas os murmúrios acontecem
sobre o caminho cego.



*


Rio, 23.07.2020

Flor-de-maio


Não só na sombra das flores-de-maio,
mas nas roseiras de junho e julho
vermelhas de rosas
e vergadas no peso da antiguidade,
sim, porque o peso não é brando
e é rude demais este momento.

Sim, e sempre porque no instante em que escrevo
nascem crianças ao redor do mundo
e a grande força da natureza em torno de mim
- por sobre as copas verdes das árvores -
sobressai e clama
aos lábios abertos do mundo!


Rio, 2.08.2020


Escrevo com os olhos e a boca fixados no horizonte
desta manhã blu de luz
Encontro relatos de mentiras de muitos 
e a verdade sem rosto fincada em alguns

Amanhece...

A memória não acalma
habita a solidão dos dias
- sem ponto nem vírgula -
(plena de interrogação)!


*


Oração

Dai-me o azul e o verde sem idade
Das plantas e das estações febris
dai-me a raiz dos dias

Com os cabelos ao vento
e a chuva molhando a terra fresca
dai-nos as sementes da esperança


*

Fragmento do diário on-line de Solange Rebuzzi gentilmente cedido pela autora para a publicação no @EntreLivresetHistoires.
Mille mercis, Solange!

Para conhecer na íntegra o "Diário" com sua produção poética, reflexões e histórias acesse e siga o Blog da autora "Manuscritos: poemas, narrativas, traduções" através do endereço 



Sobre Solange e sua obra:

Solange Rebuzzi é escritora e psicanalista. Publicou livros de poesia, ensaio, ficção e textos de psicanálise em revistas no Brasil, na França e na Argentina.

Dentre os livros de poesia na 7Letras Leblon, voz e chão (2004) com fotos em pb de José Eduardo Barros, Outonos [montagem incompleta] (2014) e O riso do inverno (2018).

Os ensaios Leminski, guerrreiro da linguagem (7Letras, 2003), O idioma pedra de João Cabral (Perspectiva, 2010) e Traduzir, testemunhar (Lumme, 2014).

Os romances Estrangeira (7Letras, 2010) e Quase sem palavras (7Letras, 2011), e as narrativas poéticas Livro das areias (Lumme, 2012) e Gradiva verão (Lumme, 2013).

As fábulas O sonho da gaivota, ilustrado por Francisco dos Santos, Formigueiro em festa e A coruja e o fogo; projetos da Lumme editor.

Traduziu Nioque antes da primavera – Francis Ponge bilíngue (Lumme, 2012). Oito noites em Veneza (7Letras, 2016) se escreve entre o ensaio e o relato de viagem, pontuado pela lente do fotógrafo José Eduardo Barros.

Em 2017, publicou Assis de Francisco/Francisco de Assis que vem com fotos coloridas de Assis na Itália, e na ‘coleção Megamini’ o poema Movimentos.

Seu livro A bordo do Clementina e depois (7Letras, 2020) é um romance poético-histórico com dados da genealogia familiar. Traz, também, um caderno de fotos em pb. do companheiro José Eduardo Barros.



Fotografia:   Romulo Gouvêa
                    @romulo_gouvea_photos (Instagram)


Comentários

  1. Impressionante a leveza como a autora coloca o peso do cotidiano. Leitura imperdível.

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  2. as palavras da Solange tocaram em mim...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que bom Bianca! A poesia de Solange é realmente sublime!
      Obrigado pela visita.

      Excluir

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