Esta (quase) resenha é sobre travessias e Estilhaços. Sobre Haiti e Brasil, Haiti-Brasil-Haiti, em modo repetição. Sobre Estilhaços, estes laços, estes aços, este tudo-tanto literário que é, de fato, uma enorme pena desconhecermos. É também sobre “breviários de cantos” e sobre desatar o silêncio do poema (p.29), como escreve Frankétienne, polivalente poeta haitiano. É, sobretudo, sobre elos que apontam para encontros e constroem cais nas Américas pós-coloniais. E me ancoro nas palavras do poeta e musicista brasileiro Milton Nascimento em sua ode ao mar-caminho-cais: “Invento o mar / Invento em mim o sonhador / Para quem quer me seguir / Eu quero mais / Tenho o caminho do que sempre quis / E um Saveiro pronto pra partir / Invento o cais / E sei a vez de me lançar”.
Esta (quase) resenha é sobre travessias e Estilhaços. Estilhaços, a primeira antologia brasileira bilíngue, francês-português, de poesia haitiana contemporânea, publicada em 2020 pelo Selo Demônio Negro. Uma antologia-cais fruto de caminhos sonhados por Henrique Provinzano Amaral, jovem e talentoso tradutor paulista que se consagra a estudos de tradutologia na Universidade de São Paulo e à obra do intelectual martinicano Édouard Glissant. E já no título do livro ecoam notas de pluralidade: laços, fragmentos, incompletudes e amostras poéticas a serem completadas pelos leitores. No centro de Estilhaços, o protagonismo da voz da ilha haitiana até que ela “faça eco do lado de fora” (p. 67), uma ilha-saveiro pronta para partir.
Esta (quase) resenha é sobre uma antologia-cais que reúne cinco poetas haitianos de diferentes gerações: René Depestre, Frankétienne, Marie-Célie Agnant, Évelyne Trouillot e James Noël. Vozes de geômetras, de viajantes esporádicos e da diáspora haitiana (Marie-Célie mora há décadas no Canadá, onde publica) capazes de compor um mosaico da rica e prolífera poesia haitiana de expressão francesa para o público brasileiro. Os poemas acolhidos em Estilhaços foram selecionados pelos próprios escritores, movimento de biografia-poética com poemas quer seja diretamente enviados a Henrique Amaral quer seja compartilhados de antologia organizada por James Noël, em 2014, a Anthologie de poésie haïtienne contemporaine, com setenta e quatro poetas haitianos. Este último caso é o de René Depestre que, com seus mais de noventa anos, reduziu sensivelmente diálogos acadêmicos e editoriais.
Esta antologia-cais se inicia com o poema “Prólogo” de Depestre, no qual uma lista de temas, da moral às flores, passando pela bíblia e por Napoleão são acompanhados da sentença “conheço não”. E nesta espiral de desconhecimento, de rasura, de negação, de vida passada a limpo, se eleva o poeta que entoa “eu recomeço a vida / com meus únicos recursos” (p. 13). E quais seriam mesmo estes recursos, Depestre? Um esboço de resposta nos é apresentada no poema seguinte, “Um tempo de cão”, afinal “amanhã fazendo as vezes desse tempo de cão / Cada um poderá ser rei de ruas raízes / Cada um reinará ao sol de seus neurônios / Todos juntos sobre a terra vamos colocar / a existência e suas loucuras enfim no lugar” (p. 15).
E assim, o poeta que fingia pouco saber, troca de pele, assume, ao mesmo tempo, a égide do uno e do coletivo, instâncias transformadoras da sociedade que se lança ao mar em tempos de cão, rumo ao cais da resiliência e das metamorfoses. O mote do uno-coletivo, faces de uma mesma moeda social, percorre a tessitura poética de Estilhaços, que congrega poemas capazes de lançar holofotes sobre “injustiças cortantes” (p. 67), “humilhações seculares” (p. 39), “o carrossel que “não para nunca” (p. 45), “os sulcos da memória” (p. 41), “a estética do mastro que sangra até o vivo do abrasamento em fogo de apocalipse” (p. 31) e a “transparência do verbo” (p. 67).
Em “Última fase”, poema de encerramento da antologia, James Noël define o eu-lírico como arruaceiro da língua e do fim (p. 71) e conclama a todos para “A FRATERNIDADE CONTRA”, “fraternidade que deve contrariar seu riso / transformá-lo em vibrato / em soluço longo / sanguinolento (...) / fraternidade que deve pôr em evidência / sua pane seca” (p. 71). Fraternidade com “punhos acesos de piromania profunda” (p. 73). E isso sob os cuidados dos Loás, divindades religiosas vinculadas ao vodu haitiano. Nesta perspectiva, Estilhaços completa um ciclo que parte da negação para se encaminhar ao fogo restaurador, piromania poética, compreensão de que “é preciso cavar para se apoiar” (p. 69).
O Haiti, em seus dramas, delírios e amores, se despe diante dos poetas. Em Estilhaços, a ilha encarna ares de pássaro: corvos, andorinhas e pássaros feridos sobrevoam os poemas. Se Milton Nascimento inventa o cais e sabe a vez de se lançar, os poetas de Estilhaços inventam uma ilha-voo que se lança sobre si mesma, se aninha, ressurge do fogo-poético de James Noël e perscruta o espaço que tenta coadunar a existência e suas loucuras, como já assinalou Depestre. Na voz de Évelyne Trouillot, “hoje minha ilha dobrou sua asa e eu recolho nela minha pena de pássaro dilacerado entre a incerteza e o voo na beleza esmeralda de sua história palpitante” (p. 53). Em Depestre, “a vida encontra ilhas onde a cana-de-açúcar e os preconceitos de raça não passam nunca no mesmo campo sob as asas brancas dos corvos da infância” (p. 23). Para além da ilha-pássaro, epítetos como fragilidade, rebeldia, pesadelo, tortura, perdição e luz também se associam no inventário que se propõe do Haiti; ilha multifacetada apresentada na inteireza de sua complexidade. Para Frankétienne, “ao fogo das cidades que ardem / tornou-se mais frágil a ilha / em pesadelo de indecência” (p. 29). Nesta ilha, “sua fala outrora reclusa / hoje rebelde / torturada pela urgência / busca obstinadamente / nos escombros de um país perdido / esta língua de luz” (p. 49), sentencia Marie-Célie Agnant.
Estilhaços passa em revista igualmente o machismo e o feminismo, bradando por um Estado de poesia, verdadeiro golpe de Estado poético, no qual “o macho não agarra a fêmea, nem mesmo a possui, menos ainda a corta, talha, devora crua ou a submete a uma implacável encoxada” (p. 23) e denunciando “a supremacia do macho, a hegemonia do macho, a tirania do macho, a ditadura do macho” (p. 35). E, por fim, este Estado de poesia desabrocha, descobre, permite, atravessa uma poesia contemporânea haitiana que acaba de aportar, graças ao belíssimo Estilhaços, no cais brasileiro.
Vanessa Massoni da Rocha é professora de língua francesa e de Literaturas francófonas no Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, onde desenvolve pesquisas acadêmicas centradas na literatura caribenha.
Livro Estilhaços - Antologia de poesia haitiana contemporânea:
Muito bom ler o texto esclarecedor da professora Vanessa Massoni! Obrigada!
ResponderExcluirObrigado pelas palavras, Laura!
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