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A palavra não mora no papel

se percebo uma maçã
esta maçã me constitui:
o cabo levemente envergado
a pele vermelha pintada de sarda
sou eu a maçã agora que ela
entrou no meu mundo sou eu
vermelha arredondada manchada
é meu o seu interior amarelado
o suco que solta da carne esponjosa
as pequenas sementes escondidas
em suas costelas sou eu
a mesma que decide pegar
com as mãos a maçã
e sem descascá-la, feri-la
com os dentes, ferir-me
com os dentes e sentir
sobre a língua sua
carne meu suco
o som de seu
desaparecimento
a nossa frágil eternidade.



sobre a cabeça sempre o mesmo
conjunto de estrelas acesas no céu
(mesmo quando há nuvens
é garantido que estão lá)
algumas estrelas já morreram não
existem desapareceram e no entanto
lá estão elas – cotidianamente –
as estrelas mortas que vejo são
parte da minha experiência da minha
relação com o céu e eu sou elas
que não existem mais que estão
– no momento em que as vejo –
no passado eu sou o seu futuro
as estrelas mortas estão na base
da minha existência na beira
dos meus olhos as estrelas
sou eu também então talvez
eu já esteja desaparecida
eternamente desaparecida
embora para os meus pares
não pareça.



é mais fácil assimilar que se leio
um poema de eliot o poema
me constitui e de certo modo
o poema me escreve e pode mesmo
corresponder-se comigo
o poema e eu podemos dormir
juntos e sonhar com melancias
porque todo poema tem uma
melancia em potencial esperando
para ser devorada todo poema
tem tudo aquilo que não diz
ou seja: tudo.
quando escrevo este poema
ou qualquer outro eu escrevo
sobre tudo o que não sei dizer
como você como a teoria dos conjuntos
como a invenção das máquinas
de costura como o desaparecimento
principalmente todo poema
declara o nosso desaparecimento.



talvez tudo o que se queira
seja sentir-se especial fazer
alguma coisa inteiramente
nova como uma receita que junta
ingredientes que nunca se juntaram
antes ou como um garimpeiro
que descobre um novo mineral
cujo brilho não recende a poder
mas a alguma espécie de partilha
talvez fosse menos ambicioso
e desejasse apenas um instante
que fosse veloz mas que nunca
fugisse à memória um instante
de felicidade absoluta plena total
aquela que ninguém conhece
porque há o passado e principalmente
porque há o presente bem na sua
cara
e para isso talvez exista a consciência
para que se possa sentir-se
especial e no instante seguinte
perceber que besteira que bobagem
que nada talvez
nem estejamos aqui.



se digo que conheço alguma coisa
estou mentindo e estou mentindo
se digo que estou mentindo
só há verdade possível nas
incertezas – que obviedade.
os dentes levemente tortos as sombras
difusas as palavras sem sentido
vazias só som ou só desenho
a consciência flutua sobre as cabeças
com mãos inexatas e frouxas
com pernas trêmulas diante
do escuro dos quartos
tudo pode ser tão sombrio quando
se quer conhecer verdadeiramente
e tão claro quando se admite
que uma coisa não é uma coisa
uma coisa não é nada deixa pra lá
vira para o lado e dorme.



não sinto meus pés não sei que são
os pés senão extremidades bastante
mal desenhadas que tocam o chão
mas não são os pés que sinto é o chão
pequenas deformações que corrompem
a superfície lisa e fria as linhas
ignorantes de qualquer propósito
o chão é um animal que dorme
sem ameaças mas sempre pronto
não sinto você não sei quem é você
você está descascando e insinua-se
uma pele novíssima fraca feia fria
entre nós não há ilusão
você está se desfazendo bem
na minha frente diante dos meus
olhos enganados mas não são os
olhos que te veem é você que existe
que invade o campo vasto da realidade
para de uma hora para outra – feio frio fraco
– lembrar que o propósito de existir
é desaparecer.



uma maçã longe dos meus olhos
sobre uma mesa – uma maçã e
uma mesa concretas existentes
palpáveis matéria e ar – está
onde repousa independente
de meu testemunho – olhos
neurônios cérebro sangue dentes
mãos e coração – assim como
você do outro lado da linha do telefone
você existe simultaneamente
à sua ausência sua voz
reproduzida por um aparelho
eletrônico que coisa mágica
é sua voz chegando até mim
embora a linha não nos ligue
e você do outro lado do oceano
você a maçã a mesa ao mesmo
tempo em lugares diferentes
e eu que não vejo nada disso
ainda assim tenho você
a maçã a mesa e não os tenho
ao meu alcance que coisa
mágica é ser tudo que me
risca o pensamento: a consciência
colocando em igual pé a presença
e a ausência. aparência e
desaparecimento.



o que será a música uma prova
material do ar uma ideia que se
escreve sem palavra uma forma
que se manifesta sem matéria
uma coisa que acontece e que
sequer aparece um fato um ato
uma espécie como a luz mas
a música não tem aparência.



palavras estalam no pensamento
– mas onde está o pensamento
senão nas coisas mesmas –
o pensamento é a palavra
a palavra é o pensamento
e é aquilo que ela representa:
a lembrança do toque de uma
porcelana a temperatura branca
da pedra os olhos vítreos do gato
e até a palavra amor terá uma
forma um rosto um gosto.
o pensamento não mora no corpo
não tem casa própria não tem
nem cor. é selvagem e se domestica
mas é essencialmente selvagem.
a palavra não mora no papel não
vive só de som. a palavra é tão
coletiva quanto particular.
este poema não é mais meu
do que seu. este poema vai
desaparecer.



a voz dos ausentes – timbre
vibração ritmo pausa desenho
– tem mais presença que o silêncio
dos presentes.



toda saudade é particular
mas eu sou tudo aquilo
que me falta:
avó avião avestruz.
para onde vai a voz
quando deixa a boca
para onde foram
as estrelas mortas
as pessoas das filas
os dentes de leite
as pedras dos rins
as paixões passadas
para que saber para
onde foram? é simples:
tudo que existe
desaparece.



se cato um caco de vidro verde
um fragmento já esquecido da
forma original só um caco sem
qualquer utilidade se pouso
este pedaço de vidro sobre
um livro ou um monte de papéis
o seu peso é o meu peso
a sua importância o seu brilho
opaco o seu alheamento
o seu poder de ferir a sua
recusa em ferir o seu descanso
dominical sobre outro objeto
são meus atributos. eu: um caco
verde inútil opaco importante.



“objetos sólidos” é o nome
do conto em que virginia woolf
dá a um caco encontrado
sob a areia da praia um relevo
especial uma importância
vital e fica claro como os objetos
misturam-se ao pensamento
misturam-se até mesmo ao
corpo de modo que as coisas
que cultivamos determinam
nossa forma de estar no mundo
direcionam o olhar mesmo em
distração influenciam as escolhas
os objetos sólidos – e também
os não sólidos – nos compõem
às vezes se decompõem
quase sempre os objetos
em algum momento insuspeito
desaparecem.



você me diz pelo telefone:
mordi a bochecha e a culpa
é sua. só posso concordar
porque se não estivéssemos
em contato você estaria
em outro ponto do espaço
você estaria em outra posição
e seu futuro seria suavemente
(ou completamente) diferente.
mas agora já mordi sua bochecha
e não há como voltar atrás.



o poema pensa sem cabeça
é só pé e chão letra e linha
onde fica o pensamento do poema
que poesia não é máquina
é mágica é máscara é matemática
do coração mas o poema não tem
coração tem luz própria repara
como dá voltas em torno de ti
e quando não há ambiente
repara
o poema apenas
desaparece.


Laura Liuzzi
Poeta, é autora de Calcanhar (2010) Desalinho (2014) e Coisas (2016)


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