[A literatura é a escrita] onde as palavras podem ter um sentido bastante diferente do que diz o léxico, onde a fagulha metafórica está sempre um passo adiante da função de decodificação, onde uma outra leitura, imprevista, é sempre possível.J.M. Coetzee, Diário de um ano ruim.
A vida, ainda que valha mais do que as palavras, não vale sem elas. Não é exagero, portanto, dizer que a literatura, resultado da palavra, responde pela mediação entre o que se imagina e o que se deseja; o que se consegue realizar e o que deveria ou poderia ter sido feito. Ao se encharcar de vida e pensamento, as palavras se põem em estado de leitura e, assim, podem servir aos homens para refletir sobre o prazer e o viver, “encargo de pouco proveito e muito desempenho, não nos dando por ora lazer para nos ocuparmos de aumentar a riqueza, a beleza e a expressividade da língua”, como afirma o narrador do conto “Hipotrélico”, texto de Tutameia, de Guimarães Rosa.
Mesmo na atualidade, em que, de modo geral, descuida-se da vida no cotidiano, solapada por violência incontrolável e por uma cultura do dinheiro e da celebração da imagem, a literatura ainda se destaca como um convite à meditação. Seja no exercício da pesquisa e do magistério, seja na leitura por puro prazer, confesso ter encontrado romances – rótulo aparentemente inadequado em relação a vários daqueles textos - que me encantaram pela criatividade, as indagações suscitadas e a capacidade de emocionar, que me marcaram por sua densidade e capacidade de abordar questões candentes da vida atual, entre as quais o desespero, a fragilidade e a solidão que afligem grande contingente da população do planeta, contraditoriamente enlaçado a fantástico avanço tecnológico e a novas e incessantes promessas de progresso e abastança, assim como à crise mundial de uma pandemia que, desde os últimos meses do ano de 2019, assola o mundo e não pode ser escondida sob o elogio do mercado livre e do estado mínimo. Nos tempos que correm, importa meditar sobre o que tais textos querem dizer, os quais, seguindo um rastro de Fernando Pessoa, nomeei de ficções do desassossego, em livro de mesmo título.
No cenário transformador do Modernismo internacional, Fernando Pessoa, em seu heterônimo Bernardo Soares, legou-nos o Livro do desassossego, no qual registrou fragmentos de ensaio e memória, instantes ficcionais. O texto se constitui numa espécie de diário, matéria híbrida em que o mundo circundante e potente sensibilidade narrativa dão ao leitor a possibilidade de aceder a uma belíssima obra, cuja capacidade de transformação não cessa de ser assinalada. O narrador principal, mas não exclusivo, das centenas de fragmentos que compõem o livro, chamado pelo heterônimo de “autobiografia sem factos”, apresenta-os sem encadeamento claro e sem noção definida de tempo. Leem-se apenas narrativas de vários tipos - fulgurações, reflexões, devaneios, confissões da intimidade - que deixam ver uma subjetividade sem ponto de repouso, em desdobramento e metamorfose contínua.
As ficções do desassossego - a exemplo do que fez Kafka, do que faz J. M. Coetzee, do que fizeram Clarice Lispector e Elvira Vigna, e do que escreve a excelente Ana Luiza Escorel - são textos que merecem ser lidos e relidos, pois remetem à abertura de desafiadores horizontes formais, temáticos e éticos. São obras extremamente criativas que, brasileiras ou estrangeiras, provocam alterações substanciais no horizonte de expectativas que orientou os textos matriciais do passado, transformando-os a partir de uma reflexão pertinente e prenhe de sentidos.
A arte que hoje se produz e que não se recuse a repensar e problematizar o mundo - em seu posicionamento egoísta e economicista, no qual se transformam os seres em coisas e números - é uma forma de ficção do desassossego, criação que habilita os homens a pensar um mundo melhor, transformando-o pela manifestação da consciência crítica e da reinvenção coletiva, as quais iluminam a dor e a crueza das vidas em desamparo.
Profa. Aposentada de Teoria da Literatura do Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ; Profa. Titular Aposentada do Departamento de Letras Clássicas do Instituto de Letras da UFF. Pesquisadora de Produtividade do CNPq, Nível 1-A, com a pesquisa com vigência de mar/2017 a fev/2022. Autora, dentre outros, de Totens e tabus da modernidade brasileira: símbolo e alegoria em Oswald de Andrade (Prêmio APCA de Ensaio) e, mais recentemente, de Ficções do desassossego (Rio de Janeiro: Contracapa: 2010), Náufragos da esperança: a literatura na época da incerteza (Rio de Janeiro: Editora Raquel, 2012), Nem musa, nem medusa: itinerários da escrita em Clarice Lispector (Niterói: EDUFF, 2012, 3. Ed) e Uma literatura inquieta (RJ: Caetés, 2016). Professora visitante em várias universidades do exterior e no Brasil. Coordenadora do Grupo de Estudos Nação e Narração, fundado em 1995, e certificado pelo GRPesq do CNPq. Atualmente em exercício na Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Estudos Literários da Universidade Federal Fluminense.
Um texto que nos alerta para a importância da Literatura em tempos tão nebulosos. Obrigado prof. Lúcia Helena.
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