No âmbito da trama chama a atenção também a ambientação em Brasília, espaço que raras vezes encontramos na ficção brasileira recente. A cidade surge como referência constante em função de sua proximidade com a política e o poder, mas poucos foram os momentos em que se viu transformada em tema ou cenário na ficção brasileira. Para ficar em poucos exemplos, é possível citar a poesia de Nicolas Behr, em que avulta de forma lírica e muitas vezes irônica em sua beleza e contradição. Ou em alguns dos romances de João Almino, como Cidade livre (2010), em que o escritor e diplomata traça relações entre a cidade e personagens em trânsito, a caminho ou vindos do nordeste do Brasil. Em alguns dos vigorosos escritos do judeu-polonês Samuel Rawet, engenheiro calculista que ajudou a projetar importantes monumentos da Brasília, ela surge como espaço de solidão e desencontro, em uma visão que incorpora os indivíduos à margem daquele projeto desenvolvimentista de nação.
Aos sessenta anos de vida, longe do mar, a cidade talvez esteja gestando as vozes que irão narrá-la a partir de novos ângulos, com personagens de variados matizes e procedências. A ainda jovem/já velha capital reserva surpresas. Por cima do mar é uma delas. A narrativa invoca a referência líquida como mote, recuperando a potente imagem dos navios negreiros e da diáspora africana. De Angola partem os antepassados da protagonista-narradora Lígia Vitalina, inaugurando uma linhagem de personagens femininas que de variadas formas estarão marcadas pela escravidão e o racismo. “Alguém como ela, ou as outras mulheres do seu grupo, ou as minhas mais velhas, ou eu mesma, faz tempo que partiu daqui navegando, mas permanece no mesmo lugar. O navio delas é o meu” (p. 17). Demarca-se, desde o início, o desejo de relacionar um passado de opressão a um presente segregado. Todas essas vozes navegam no mesmo barco.
Nascida na periferia de Brasília, a personagem irá se relacionar ao longo da vida com a herança do desterro e da violência. O presente da narrativa acompanha Lígia já aluna da Universidade de Brasília. Mulher, negra e pobre, a estudante do curso de História transita entre a Ceilândia e o campus da Universidade. Vai a shows de rock, vê conhecidos serem assassinados pela polícia, convive em ambientes dos quais se sente excluída: “As narinas generosas me permitem inspirar o ar com amplitude e força. Respirar bem é fundamental para quem é invisível” (p. 34). A protagonista identifica essa condição já na trajetória do pai, migrante nordestino que trabalha na construção da capital - como muitos, ele permanece alheio aos lugares que construiu com as próprias mãos.
Dornellas é hábil no manejo dessas histórias, em que destinos individuais se veem enredados a dramas coletivos, como na menção ao massacre feito pela Guarda Especial de Brasília, em 1959, em que operários revoltados com as péssimas condições de trabalho foram violentamente reprimidos. Ou no episódio em que policiais invadem um baile de black music na Ceilândia, gritando a ordem “branco sai, preto fica”, em 1986, na Ceilândia. Em ambos os episódios, violências que ecoam antigas práticas. Da crueldade dos porões dos navios negreiros, passando pelo massacre dos operários e chegando à ordem perversa do “preto fica”, uma mesma postura que atravessa os tempos, em que determinados lugares sociais são lembrados, para que permaneçam submissos a uma ordem maior: que cada um fique no seu lugar.
A narrativa desdobra também os inúmeros elos que unem Angola e Brasil, uma vez que a personagem, anos depois, já professora da UnB, se apaixona por um professor angolano, fazendo com que a segunda metade do romance transcorra em paisagens africanas. A leitura cresce quando paralelos e paradoxos entre nossas culturas de países colonizados são mencionados. “Os lugares e as gentes de Angola me lembram muito algumas cidadezinhas e o povo negro de Minas Gerais” (p. 237), afirma a narradora.
Trata-se de um romance que nos segura pela mão todo o tempo. Ali se narra a trajetória de vidas sofridas, de lutas incessantes por espaço, por lugar, por direitos, vislumbrado no cotidiano de mulheres diante de uma realidade que insiste em segregar e silenciar. Nos corpos negros se inscreve toda essa memória: silêncio, escravidão, estupro, morte. A relação da protagonista com sua própria geografia corporal ocupa passagens centrais da narrativa: “Despertava suada, ofegante, atordoada. Conferia a cor da minha pele e sentia um conforto de território conhecido. Minha pele ainda era preta. Ainda sou negra. Ainda sou” (p. 83).
Ceilândia, Brasília, Benguela, Huambo estão unidos na prosa de Dornellas, em paisagens por onde se move a personagem que congrega tantas histórias. Lígia sobrevoa todas essas localidades, em trechos que deliberadamente quebram o realismo da narrativa e remetem a um espaço onírico e libertário. A personagem também escreve suas memórias e encontra na palavra o lugar da resistência. “Mamei em seio de mulher e de loba-guará. Sou tamanduá que engole formiga viva. Galope de ema. Seriema gritando na campina. De um dos meus galhos pende um pequi grande, de carne amarelo-ouro como a luz que me trouxe. Vim de longe, de um lago que paira no ar. Caminhei por um planalto central e caí noutro. O que faço cá, deste lado africano do mar-oceano? Desterrada? Não. Reencontrada”.
Curioso pensar que o mar, lacuna sempre evocada na geografia brasiliense, surja de modo tão orgânico na bela prosa poética de Dornellas. Ele ecoa no céu por onde a personagem voa, se transmuta na água do lago que banha a cidade, transforma-se no caminho de volta de quem foi obrigado a migrar. No romance, os personagens muitas vezes afundam, se afogam, sufocam. Mas como afirma a personagem ao referir a alcunha que recebera da mãe em uma espécie de segundo batismo, “esse segundo nome me ajudou a manter a cabeça fora d´água”. São muitas dores e desterros a narrar, mas é no gesto de erguer a cabeça para fora da água que se constrói a enorme força do romance: “Eu me chamo Lígia, e meu nome é escudo”.
Deborah Dornellas
Editora Patuá, 2018
Stefania Chiarelli é professora e pesquisadora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF). Publicou os ensaios "O cavaleiro inexistente de Italo Calvino: uma alegoria contemporânea" (EDUCS, 1999), "Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum" (Annablume, 2007) e o livro "Falando com estranhos: o estrangeiro e a literatura brasileira" organização em parceria com o autor Godofredo de Oliveira Neto (7Letras, 2016).
Interessante! Sua descrição pareceu continuar a poesia e a leveza que o romance de Deborah Dornellas deve conter - ainda não o li.
ResponderExcluirSobre Brasília, será que a cidade projetada na arquitetura se projeta, agora, na literatura? A trilogia de Hatoum e o livro O fantasma de Luís Buñuel, de Maria José Silveira, também tem parte significativa de seus enredos nesse espaço.
Obrigado.
Romance muito atraente! Já coloquei na lista! Obrigada pelo belo texto!
ResponderExcluirAmei essa resenha, leve, suave e sublime. Um convite à leitura da obra, obrigada Stefania.
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