Pular para o conteúdo principal

A bordo do Clementina e depois


A bordo do Clementina encontramos o tempo e o depois. A travessia realizada através dos olhos e dos sentidos de Solange circunscreve o tempo e seus sucedâneos como personagens principais, a transitoriedade, as perdas, a escrita, os encontros, a morte, as colheitas, as estações. Solange conta a história de uma vida atravessada por muitas outras, metáfora de um Brasil que se constitui em múltiplos retalhos e cores.

A bordo, afirmamos o que não vimos. O barco está sempre em movimento e nele a resposta para o enigma é o salto para a poesia. Todavia, seu salto é amparado em uma rede de outros escritos, das cartas de Tia Dália, dos gestos testemunhados em família ou ainda transmitidos, ainda que não revelados. O texto escrito a bordo do Clementina tem balanço, às vezes, as palavras, surfam, flutuam ... outras afundam em sua densidade e segredos; histórias que esperávamos encontrar mais adiante solucionadas, mas que são deixadas para o trabalho dos escafandristas, depois. Assim, os gestos que tecem o futuro estão sempre em um tempo de suspensão. 

Os italianos que chegam no sudeste brasileiro, especialmente no Espírito Santo, encontram os cearenses que fugiram da seca de 1877-78. Em comum, a fome e a esperança de uma mesa novamente farta e de um chão. O mar e o sertão foram atravessados por esses povos em busca de uma vida que exigiria coragem e que colocavam em suspensão (e em suspeição) o destino. Na travessia talássica e nas veredas sertanejas, a palavra e os gestos foram ornamentos para a transmutação. 

O sertão é também matriz do ser (tão), o nosso livramento de tudo que é fútil e supérfluo. De sua etimologia desertãnu desdobram-se outros significantes: deserção, desengano, deserto. E ali, à luz dos paradoxos humanos, onde a natureza nos priva de amparo, nasce ainda a forma e força de um devir sempre em construção. Ou seja, lá onde imaginávamos que cessaria a beleza e a criação, surgem narrativas e estratégias de sobrevivência psíquica que colocam novamente em jogo a precariedade como matriz da esperança. Os italianos a bordo do clementina nos falam de uma outra (e mesma) matriz da nossa nacionalidade, onde o mar se faz, paradoxalmente, forte, torrente de abundância, profundo, imprevisível, insondável; simultaneamente calmo, raso, tranquilo. Colocar em movimento o sentido da precariedade não significará negá-lo, ao contrário. Consentir em seus múltiplos e paradoxais sentidos, assim afirmaremos o depois.

Para minha amiga querida, com um beijo e os votos de prosseguir. 

Karla Patricia Holanda Martins é professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e autora dos livros "Profetas da chuva" (2006) Editora Tempo Dimagem e " Sertão e Melancolia: espaço e fronteiras" (2014) Editora Appris.




Comentários

  1. Karla querida,
    agradeço emocionada o sensível texto que você escreveu
    sobre a viagem dos italianos que embarcaram no navio
    Clementina e, aqui, chegaram em outubro de 1877.
    Entre os inúmeros passageiros estavam meus antepassados
    paternos. Conforme você constatou, alguns cearenses se
    uniram nesta aventura para desbravar a região do sudeste
    brasileiro, no Esp. Santo.

    Um beijo,
    Solange

    ResponderExcluir
  2. Histórias de vida. Marcas dos sujeitos. Já quero ler.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Deixe seu comentário:

Postagens mais visitadas deste blog

Os Colegas - Lygia Bojunga

Para o mês das crianças, "Livro Bacana"* Quando estava na frente da estante, procurando qual livro poderia indicar para este mês das crianças, não tive a menor dúvida de qual deles escolher: Os Colegas , de Lygia Bojunga.  O primeiro livro dessa escritora gaúcha, ganhador de vários prêmios, dentre eles o prêmio Jabuti, é um dos meus livros favoritos da vida. Motivo? Eu só o conheci na fase adulta e ele tocou profundamente a criança que existe em mim.  Essa obra-prima da literatura infantojuvenil brasileira tem como pano de fundo a nossa tradicional e popular festa de Carnaval e o mundo circense. Além disso, as personagens principais são animais, o que dá o tom de fábula para história. Assim, somos apresentados aos cachorrinhos Virinha, Latinha e Flor-de-lis; ao coelho Cara-de-pau e ao urso Voz de Cristal.  Por intermédio da sua descrição física e psicológica, as personagens vão sendo construídas por Bojunga, dentro do universo ficcional. No decorrer da narrativa, o leitor pod

O relógio das estrelas: Suzana Amaral e Clarice Lispector - Cassiana Lima Cardoso

Dedico aos amigos do cineclube Raul Lopes, especialmente à Lília Olmedo Monteiro, nossa anfitriã.   No livro “A Hora da estrela” (1977), de Clarice Lispector, a personagem Macabéa apaixona-se pela palavra efeméride , termo que Seu Raimundo, também um amante discreto das palavras difíceis, a manda copiar “com sua letra linda”.  Fortuna e infortúnio têm suas nuances. Não por acaso, Eduardo Portella, autor do prefácio do livro, intitulado “O grito do silêncio”, costumava dizer: “o acaso existe”. E previsto ou imprevisto, (não tem a pretensão esse texto, de mais ou menos oitocentos caracteres, quitar a discussão filosófica acerca da questão do destino), morre Suzana Amaral, autora da obra-prima, que é a versão cinematográfica da história de nossa Maca, justamente no ano do centenário de Clarice Lispector. O filme é de 1985, lançado em 1986. Decerto, ambas, escritora e cineasta, habitarão a mesma constelação em nossa memória. Duas mulheres notáveis, que realizaram obras de arte da mesma est

Acerca da Biblioteca de Português da Sorbonne Nouvelle

Para Borges, o paraíso seria uma espécie de biblioteca [1] . Toda vez que penso nessa frase, a Biblioteca de estudos portugueses, brasileiros e da África lusófona, também conhecida como Biblioteca de Português, me vem à mente. Localizada no emblemático Quartier Latin de Paris, no prédio da Sorbonne, abriga um dos maiores acervos sobre os países lusófonos da França [2] . É uma biblioteca com história secular, testemunha do interesse pelos estudos brasileiros na Europa e da intensa troca entre homens de letras e intelectuais dos dois lados do Atlântico. Ela possui nas suas estantes mais de 25000 títulos, divididos em diversas áreas do conhecimento: língua, literatura, civilização, história, geografia, etc. Tive a honra de trabalhar como assistente de biblioteca naquele lugar durante alguns anos do meu doutorado, entre 2015 e 2018. Período que foi marcado por encontros com livros e com pessoas que aguçaram meu espírito e enriqueceram profundamente minha vivência acadêmica. Entre um encon