Dizem por aí que, mesmo nas melhores famílias, há um esqueleto escondido no armário, trancafiado a sete chaves, condenado ao limbo do esquecimento e do silenciamento. No domínio da literatura, esse assunto-tabu - visto como incômodo a ser evitado ou como herança dolorosa não verbalizada -, constitui um convite ao desvelamento através da palavra e à abertura saudável para que novas gerações não carreguem o peso do que permaneceu cristalizado nos porões da memória.
No romance Elle s’appelait Sarah (2007), que deu origem ao filme traduzido no Brasil como A chave de Sara, a escritora francesa Tatiana de Rosnay tira partido dessa imagem para revisitar um dos mais terríveis acontecimentos da história da segunda guerra na França. Trata-se do episódio do Velódromo de inverno, ocorrido em Paris, em 16 e 17 de julho de 1942, quando mais de 13 mil judeus foram confinados nesse espaço pela polícia francesa, antes de serem enviados aos campos de extermínio. Muitos franceses colaboraram com os nazistas, o que representa uma vergonha nacional, que muitos tentaram e tentam ocultar. Na trama ficcional do livro de Rosnay, o cadáver de um menino judeu é encontrado em um guarda-roupa, onde fora colocado por sua irmã para protegê-lo, antes de ser aprisionada com seus pais no velódromo. O enredo gira em torno da necessária revisão desse exemplo de barbárie, que alguns políticos preferem ainda camuflar no fundo dos armários da história oficial. Ao criar a intriga de seu livro a partir de um fato histórico difícil de ser digerido pelos franceses, a autora toca em uma ferida não cicatrizada, expondo-a a seus leitores.
Marcada pelo signo da perda e do fim, a literatura contemporânea se orienta frequentemente em direção à temática da filiação em obras nas quais representar a dor silenciada passa pelo medo, pela culpa e pela vergonha. No romance La Seine était rouge. Paris, octobre 1961 (1999), da escritora de origem argelina Leïla Sebbar, outra tragédia ocorrida em Paris sai dos bastidores para ser verbalizada. Em um cenário de crueldade indescritível, no dia 17 de outubro de 1965, a polícia francesa matou e jogou corpos de argelinos no rio Sena. Como é mostrado no romance de Sebbar, por motivos distintos, famílias argelinas que vivem em Paris e o poder público francês optaram pelo silêncio, o que redundou na ocultação desse ato de extrema violência. Cabe aos personagens da geração atual mergulhar no passado silenciado, através de depoimentos de testemunhas, para tentarem preencher a lacuna e a rasura. No livro, por meio de manifestações criativas – grafites e um documentário – esses jovens conseguem fazer falar o silêncio, interrompendo a ruptura da transmissão de uma herança difícil de ser representada.
Também no romance Lignes de faille (2006), da escritora de origem canadense Nancy Huston, dá-se a revelação de um segredo familiar ligado à memória de uma catástrofe histórica. Como se confirmasse palavras de Benjamin, para quem esconder é deixar pistas, desde o início, a narrativa dissemina, de modo subreptício, indícios do que só será desvendado no seu final. Neste caso, o que está “dentro do armário” se manifesta sob a forma de marcas na pele dos quatro narradores, representantes de quatro gerações da mesma linhagem familiar, que assumem o relato de sua vida com a voz da criança de seis anos de idade. Invertendo a ordem cronológica habitual, o romance começa em 2004, na época do governo Bush e, gradativamente, recua em direção ao passado para chegar ao período da segunda guerra mundial. Livro centrado na dificuldade de transmissão do legado familiar – a memória do horror do programa nazista Lebensborg -, Lignes de faille (= falhas geológicas) sugere, já no título, as fissuras intergeracionais entre os diferentes personagens-narradores. Podendo ser visto como um quebra-cabeça que se forma pouco a pouco, com fragmentos memoriais ao longo de longos quatro capítulos, o romance explora a isotopia do segredo, que sugere a dificuldade de se chegar à origem do drama familiar. A simbologia da pele aí se reveste de um valor particular: se a pele é o que há de mais profundo - como já disse Valéry -, deve-se levar em conta que a mancha dermatológica, à primeira vista superficial, é a ponta do iceberg, que esconde e revela o não-dito, o recalcado, o estranho-familiar desestabilizador que remonta à superfície na pele dos personagens e na pele do texto. Esqueleto insuspeitado que vem à tona ao longo da leitura de um dos romances mais interessantes de nossa época.
Bernadette Porto é professora Titular, que atua nos Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFF. Durante mais de vinte anos foi bolsista de produtividade do CNPq. Organizou obras coletivas e publicou artigos e capítulos de livro no Brasil e no exterior. Coordena, desde 2018, o projeto Conversas com a Literatura, no Curso Verbo Línguas e Culturas onde dá aulas de francês voltadas para turmas avançadas.
Que belo texto, inspirador inclusive para se pensar um trabalho clínico com refugiados exilados, por exemplo. Há palavras, que para serem descobertas, precisam ser descobertas em profundezas do ser. Na pele, apenas a ponta do iceberg. Lindo, Bernadette.
ResponderExcluirQue bom ter um leitor atento e competente como você. Vladimir!
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