Pular para o conteúdo principal

A literatura fora dos livros



L: Tudo mudou em novembro de 85. Eu conheci de uma hora pra outra a celebridade.
D: Como isso aconteceu?
L: Você deve bem saber... Não se faça de idiota comigo.
D: Eu esqueci.

Dany Laferrière [1]


Nós falamos, gravam o que dizemos, secretárias diligentes escutam nossas falas, expurgam-nas, transcrevem-nas, pontuam-nas, tiram delas um primeiro script que nos é submetido para que o limpemos de novo antes de entregá-lo à publicação, ao livro, à eternidade. [...] Porque é mesmo preciso durar um pouco mais do que a própria voz; é preciso, pela comédia da escrita, inscrever-se em algum lugar.

Roland Barthes [2]


No texto de abertura de O grão da voz (1981), Barthes alerta para a “armadilha da escripção”, analisando as perdas que ocorrem quando da transcrição de uma entrevista falada: “a fala é sempre tática; mas, passando para o escrito, é a própria inocência dessa tática, perceptível para quem sabe escutar, como outros sabem ler, que apagamos” [3] .

Recentemente, em razão de participar do corpo editorial de uma revista cujo texto de abertura é um diálogo com uma personalidade escolhida por sua relevância, tive a oportunidade/necessidade de refletir sobre os mecanismos em jogo no que chamamos de entrevista, termo etimologicamente relacionado ao francês entrevue (“ato de ver um ao outro, breve visita”) e que remonta ao latim inter (“entre”) + vedere (“ver”). Se nos ativermos estritamente às origens do termo, não seria possível uma entrevista sem a dimensão “vista”, que implica no aspecto visual (ou sonoro, por extensão), ou minimamente “presencial”, ainda que por intermédio de algum recurso tecnológico que permita a entrevista a distância, o que implica, necessariamente, em um ato de fala pontual.

Para além dos problemas elencados por Barthes quando da transcrição de uma entrevista – dentre os quais os recursos empregados para o encadeamento de ideias elaboradas no momento da fala, a que ele chamou de “palavrinhas” sem grande valor lógico mas “expletivos do pensamento” [4]  – a questão da relevância do conteúdo de certas entrevistas nos dias de hoje me despertou o interesse.

Algo que o isolamento social nos trouxe de interessante foi a capacidade (ou urgência?) de estabelecermos novas formas de diálogo com o outro. Se antes as conversas virtuais eram um suporte complementar à troca de ideias presencial, elas passaram de um dia ao outro a ser o único caminho seguro para assegurar a continuidade das conexões entre interlocutores. Inicialmente, vimos proliferar as apresentações de conversas entre pessoas através das famigeradas lives – mesmo as mais sérias delas parecem ter chegado hoje a um estado de exaustão – e aos poucos atividades das mais diversas passaram ao mundo virtual, até os encontros acadêmicos continuaram a existir (felizmente) graças à instantânea conexão entre diferentes pontos do mundo. É evidente que isso não é um advento deste ano tão longo quanto peculiar, mas a comunicação via internet parece ter contribuído para a ascensão da extimidade, de que nos fala Lacan, e para a exposição por vezes excessiva de sujeitos que creem ter algo importante a dizer.

Quando recebi o convite deste blog para compartilhar ideias relativas ao mundo dos livros e das histórias, como seu nome anuncia, meu maior desafio foi ultrapassar a barreira da sensação de não ter nada a dizer. Daí meu impulso em falar sobre o (que) falar, pensando principalmente no tanto de ideias de sujeitos que admiro e que revisitei ao longo da quarentena, através não só de suas páginas literárias mas também de entrevistas e artigos que estavam espalhados por aí e que só em um período como esses teriam oportunidade de organização e mesmo de (re)leitura...

Para Barthes, nossa fala é “imediatamente teatral”, “sempre tática”, cuja inocência está sempre exposta. Nosso conhecido intelectual não viveu tempo suficiente para degustar/amargar a excessiva exposição em massa de sujeitos em redes sociais tal como vivenciamos hoje, mas suas reflexões permanecem em alguma medida ao discorrer sobre os fenômenos que povoam os processos de transcrição do pensamento em sua inevitável fragilidade.

No entanto, pensando pelo lado positivo, um dos exercícios que a tecnologia nos permite é driblar as limitações da transcrição (e/ou da escripção, que tange ao “modo de existência do que está escrito”) e ter, facilmente, contato direto com o registro sonoro e visual de atos de fala daquelas e daqueles que admiramos. Comecei mencionando sujeitos que creem ter algo a dizer, e felizmente muitas das escritoras e escritores que admiramos fazem parte de outro grupo, daquelas/es que realmente têm algo substancial a dizer.

Um dos exemplos que me vêm à mente quando penso no assunto é Dany Laferrière, meu escritor contemporâneo de predileção, que sempre foi afeito a expor reflexões sobre sua vida e sua obra em entrevistas [5] , aquele gênero que muitos críticos literários colocam em uma gaveta inferior e preferem relegar ao espaço periférico dos apêndices extraliterários. Minha impressão é que, quando o escritor tem muita coisa a dizer, como é o caso de meu favorito, as palavras que margeiam sua obra podem constituir um interessante material para o exercício da leitura de mundo e, com a devida precaução, podem ser lidas-ouvidas-assistidas-saboreadas como constituintes de outra faceta do literário, igualmente rica, que extrapola os limites daquela literariedade academicista para chamar ao diálogo até mesmo quem pouco lê. Sobretudo após a entrada de Dany na Académie française, em 2013, o mundo passou a se interessar ainda mais pela sua fala sob diversas modalidades e sobre diversos assuntos, o que só tem enriquecido o potencial de “leitura” de suas reflexões que complementam e extrapolam o que está nas páginas dos livros.

A contemporaneidade nos trouxe como legado a fragilização das fronteiras, não só geográficas, mas sobretudo, no campo da literatura, dos gêneros que eram artificialmente delimitados segundo critérios dos quais a tradição não nos permitia escapar. É claro que entrevistas sempre existiram e sempre foram vistas como importante acessório de análise, mas o que os dias de hoje nos trazem como contribuição é a liberdade de explorar livremente, sem culpa e se assim desejarmos, a literariedade que os diálogos com escritores podem conter.

A título de exemplo, Conversations avec Dany Laferrière, de Ghila Sroka [6] , “coleção de entrevistas baseadas em seus romances”, tornou-se obra de referência para os estudiosos do escritor de origem haitiana, frequentemente analisada ao lado de sua obra ficcional por trazer visões do autor repletas de literariedade, expostas com seu estilo próprio sem se afastar de sua escrita literária. A entrevistadora/autora explica seus propósitos: “a entrevista é um modo de expressão que eu prezo porque ele permite ao interlocutor dirigir-se diretamente a nós a fim de iluminar seu pensamento”. Sroka complementa dizendo que um de seus objetivos ao compilar o extenso acervo de diálogos com Laferrière era o de “deixar expressar-se livremente este homem cuja palavra eu respeito” (p. 13).

Sintonizado com seu tempo, Dany Laferrière tem como uma das marcas de sua produção a desconstrução de barreiras editoriais convencionais, como as etiquetas classificatórias que determinam em que prateleira sua obra deve ser colocada – e isso pode ser comprovado não só pela leitura de sua obra literária mas por um passeio na vasta gama de entrevistas disponíveis. Mais do que isso, ele alfineta no interior de suas publicações a necessidade excessivamente classificatória por parte do público e da crítica em tentar defini-lo e rotulá-lo sob essa ou aquela etiqueta. Uma das boutades mais curiosas é o fato de empregar quase que na totalidade de sua obra a palavra “romance” junto ao título, ainda que se trate, em diversos volumes, de um ensaio, de um longo poema em prosa, às vezes uma entrevista ficcionalizada e, mais recentemente, o exercício do desenho e da escrita à mão [7].

Às/Aos leitoras/es que já o conhecem, deixo aqui o convite para passearem livremente por suas entrevistas e pelo vasto material disponível digitalmente, para que verifiquem o quanto de literatura existe fora dos limites de suas páginas impressas. Para quem ainda não o conhece [8] , sugiro igualmente que saboreiem as reflexões deste que, além de um grande escritor de nosso tempo, tem-se mostrado um analista social cujas reflexões possuem enorme relevância para a compreensão de nossas sociedades nos dias de hoje.


[1] LAFERRIÈRE, Dany. Autoportrait. In. : Je suis fatigué. Outremont: Lanctôt, 2001. p. 53. Tradução livre. O texto Autoportrait traz uma entrevista imaginada entre Dany (D) e Laferrière (L).
[2] BARTHES, Roland. O grão da voz: entrevistas, 1962-1980. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Tradução Mario Laranjeira. p. 1-2.
[3] Idem, p. 2.
[4] Idem, p. 3.
[5] Uma das mais recentes entrevistas de Laferrière foi publicada logo após a onda de indignação suscitada pelo covarde assassinato de George Floyd, em junho de 2020, em que o escritor comenta o problema do extremismo mundial sob o viés do racismo latente na sociedade através dos tempos, sem deixar de analisar a presença do tema em suas produções mais recentes. Dany Laferrière : “La question du racisme c’est la question de tout le monde, oui”. Entrevista disponível em https://www.franceculture.fr/emissions/linvite-culture/invite-culture-des-matins-du-samedi-2-du-samedi-06-juin-2020#xtor=CS4-1.
[6] SROKA, Ghila. Conversations avec Dany Laferrière. Montréal : La Parole Métèque, 2010. p. 13.
[7] Dois de seus livros mais recentes, Autoportrait de Paris avec chat (2018) e L’exil vaut le voyage (2020), foram publicados conforme escritos pelo autor, com muitos desenhos em cores, diagramação livre e com todos os textos escritos à mão, inclusive os elementos extratextuais como capa e ficha catalográfica.
[8] Dois romances de Laferrière foram publicados em português no Brasil, ambos pela Editora 34: Como fazer amor com um negro sem se cansar, seu primeiro livro, traduzido por Heloisa Moreira e Constança Vigneron (2012), e País sem chapéu, traduzido por Heloisa Moreira (2011). Além desses incontornáveis, outros títulos de destaque são L’odeur du café (1991), Chronique de la dérive douce (1994), Je suis fatigué (2000), L’énigme du retour (2009), L’art presque perdu de ne rien faire (2011), Journal d’un écrivain en pyjama (2013).


Luciano Passos Moraes é doutor em Estudos Literários – Literatura Comparada, mestre em História da Literatura e licenciado em Letras – Português/Francês. Atualmente, é professor do Departamento de Francês do Colégio Pedro II, coordenador pedagógico de francês do Campus Centro e membro do Núcleo de Estudos Franco-Brasileiros (NEFB/CP2).

Comentários

Postar um comentário

Deixe seu comentário:

Postagens mais visitadas deste blog

Os Colegas - Lygia Bojunga

Para o mês das crianças, "Livro Bacana"* Quando estava na frente da estante, procurando qual livro poderia indicar para este mês das crianças, não tive a menor dúvida de qual deles escolher: Os Colegas , de Lygia Bojunga.  O primeiro livro dessa escritora gaúcha, ganhador de vários prêmios, dentre eles o prêmio Jabuti, é um dos meus livros favoritos da vida. Motivo? Eu só o conheci na fase adulta e ele tocou profundamente a criança que existe em mim.  Essa obra-prima da literatura infantojuvenil brasileira tem como pano de fundo a nossa tradicional e popular festa de Carnaval e o mundo circense. Além disso, as personagens principais são animais, o que dá o tom de fábula para história. Assim, somos apresentados aos cachorrinhos Virinha, Latinha e Flor-de-lis; ao coelho Cara-de-pau e ao urso Voz de Cristal.  Por intermédio da sua descrição física e psicológica, as personagens vão sendo construídas por Bojunga, dentro do universo ficcional. No decorrer da narrativa, o leitor pod

"L'enfer, c'est les autres": um convite à leitura da representação do feminino no romance teatral sartreano em tempos pandêmicos [1]

Considerando que a literatura reflete os valores do tempo histórico em que se insere, entendemos que a expressão do teatro traz para o palco a fruição do discurso literário em sua profunda potência. Sob tal perspectiva, temos manifestações desse viés artístico na contemporaneidade dignos de nota. O beijo no asfalto , por exemplo, peça teatral de Nelson Rodrigues, teve mais uma adaptação recente ao cinema (2017), trazendo os bastidores do filme que encenam a peça, numa discussão entre várias vozes, mesmo as mais caladas, visto que o enredo transcorre às vésperas da ditatura militar do Brasil (1960). A temática de gênero, o controle ideológico por parte dos meios de comunicação e a condição humana como questionamentos do viver e do existir tornaram este trabalho mais que uma mera adaptação. Da mesma forma, os elementos há pouco elencados fazem do teatro de Sartre uma profunda fonte de inspiração para as questões relativas ao existencialismo tanto no final do século XX, quanto para a ref

O relógio das estrelas: Suzana Amaral e Clarice Lispector - Cassiana Lima Cardoso

Dedico aos amigos do cineclube Raul Lopes, especialmente à Lília Olmedo Monteiro, nossa anfitriã.   No livro “A Hora da estrela” (1977), de Clarice Lispector, a personagem Macabéa apaixona-se pela palavra efeméride , termo que Seu Raimundo, também um amante discreto das palavras difíceis, a manda copiar “com sua letra linda”.  Fortuna e infortúnio têm suas nuances. Não por acaso, Eduardo Portella, autor do prefácio do livro, intitulado “O grito do silêncio”, costumava dizer: “o acaso existe”. E previsto ou imprevisto, (não tem a pretensão esse texto, de mais ou menos oitocentos caracteres, quitar a discussão filosófica acerca da questão do destino), morre Suzana Amaral, autora da obra-prima, que é a versão cinematográfica da história de nossa Maca, justamente no ano do centenário de Clarice Lispector. O filme é de 1985, lançado em 1986. Decerto, ambas, escritora e cineasta, habitarão a mesma constelação em nossa memória. Duas mulheres notáveis, que realizaram obras de arte da mesma est