Pular para o conteúdo principal

Precisamos falar sobre "Tarde demais"

 




Olá, eu sou a Laura Margutti e a partir de hoje, uma vez por mês, estarei nas páginas do Blog Entre Livres et Histoires compartilhando com vocês minhas sugestões de leitura e resenhas. 


Bom, a resenha escolhida de hoje, tem tudo a ver com o momento catastrófico que estamos passando em relação à violência sexual feminina. O surgimento do termo “estupro culposo”, que simplesmente não existe, e que foi considerado como verdade em um julgamento recente, é algo que me incomoda, me sufoca e que está sendo difícil de digerir. O livro escolhido fala sem rodeios de uma relação abusiva. Além disso, evidencia uma série de estupros, e diz muito sobre como o julgamento contra todas as mulheres é sempre a primeira pauta a se fazer para todas aquelas que sofrem um abuso. 
Esta resenha desmistifica um dos diversos mitos socialmente construídos, e tem como finalidade demonstrar que nestes casos a culpa nunca deve recair sobre a vítima. 
Mariana Ferrer não sofreu abuso não intencional. 
Estupro culposo não existe. 


PRECISAMOS FALAR SOBRE “TARDE DEMAIS”

“Dedos quentes se entrelaçam aos meus, pressionando ainda mais minhas mãos no colchão”.
“Gemo e tento juntar as pernas, mas não consigo. Há pressão em todo lugar. No meu peito, no meu rosto, entre minhas pernas. Demoro alguns segundos para desviar minha mente do estupor sonolento, mas estou acordada o bastante para saber o que ele está fazendo”
Esses são trechos da primeira página do livro Tarde demais, de Colleen Hoover. Mostram desde o início cenas de estupro dentro de um relacionamento. Tais cenas são narradas por uma das personagens principais: Sloan, jovem que vive um relacionamento abusivo com Asa, um dos maiores traficantes dos EUA. A personagem mora com seu companheiro em uma república, onde vivem diversos outros traficantes que trabalham para ele, fazendo com que várias vezes no decorrer da história, a garota mencionasse o cansaço que vivenciava. Não possuía momentos de paz, ia para faculdade sem disposição para estudo, e sua motivação para aquele relacionamento se baseava unicamente à vida de seu irmão caçula, portador de necessidades especiais e que precisava de cuidados especializados, supostamente financiados por Asa. 

Neste livro, encontramos um nível extremo de obsessão (sexual, psicológica) desenvolvido pelo personagem de Asa para com a vítima da relação. A partir do momento que teve ciência da virgindade e inexperiência da jovem de 17 anos, os contatos íntimos foram sendo forçados por meio de chantagens emocionais que a fizeram acreditar que ela realmente estava de acordo com toda aquela situação de abuso. 

Não é segredo que a virgindade feminina é um estigma, um dogma social que traz diversos fetiches masculinos e acaba se tornando um evento (um prêmio) ao invés de um simples rompimento do hímen. É comum nos depararmos com mulheres que até mesmo leiloam a própria virgindade. Porém, esse culto ao que se diz ser a “pureza” feminina, traz diversos prejuízos na questão da valorização da mulher como possuinte de seu próprio corpo. No caso descrito no livro, pode-se notar a preocupação de Asa em não ser o único que “já esteve dentro” de Sloan – como ele prefere dizer. 

A trama do livro se dá pela chegada de Carter. Personagem que supostamente deveria ser apenas mais um dos traficantes que trabalham para Asa, mas que na verdade era um agente do FBI infiltrado naquele ambiente tomado pelo tráfico de drogas. O personagem, que por coincidência, estudava na mesma faculdade de Sloan, cria um laço afetivo com a jovem, que marcada por diferentes relações abusivas ao longo da sua vida, acaba se apaixonando pelo policial, que aparenta ser diferente de todos os outros. A intenção é clara, Carter é apresentado no livro como um salvador da vida de Sloan. O novo casal cria vínculos emocionais e vivem em um campo minado, se relacionando dentro da mesma casa que Asa. 

Quando Asa descobre a existência dessa relação, imediatamente pergunta a Carter se alguma vez ele já havia transado com Sloan. Deixando mais uma vez em evidência que a exclusividade do corpo da jovem era uma das suas prioridades. 

Curiosamente (ou não), Asa traía Sloan com diversas mulheres da república, e a única que não tinha consciência disso era a própria. Em determinado momento da narrativa, Carter questiona Asa se ele possui uma relação aberta com Sloan, decorrente das inúmeras mulheres com quem ele ficava, Asa apenas responde: “- Você é muito ingênuo, Carter. Homens traem porque possuem necessidades, mulheres se fazem o mesmo que nós, são vadias, pois não necessitam disso”

O mito de que a necessidade de prazer masculino vem acima de qualquer coisa dentro de um relacionamento, até mesmo servindo como justificativa de traição, ou vários estupros em série, como eram realizados na história, é enaltecido com o desenrolar da narrativa. Uma pesquisa de 2013 [1], realizada pela professora de fisiologia do Instituto de Biofísica da UFRJ, Denise Pires de Carvalho, afirma que não existe distinção entre os gêneros quando o assunto é interesse sexual, apenas existe a diferença de estímulo ao decorrer da vida. Homens são criados à base de pornografia, enquanto mulheres possuem a castidade como exemplo de virtude, fazendo com que ambos cresçam com uma ideia distorcida sobre sexualidade. 

Em uma votação virtual no blogosfera do UOL [2], no "Blog do Dr. Alexandre Faisal", tem-se o seguinte resultado: 71% dos votantes acreditam que o gênero masculino realmente possui mais apetite sexual do que as mulheres. Desta forma, o resultado desta votação enfatiza o mito socialmente construído, alimentando uma realidade inexistente. 

Não é somente Asa que usufrui desses mitos para forçar o sexo com sua parceira, no mundo distante da ficção, diversos homens utilizam as mesmas desculpas para benefício próprio, e com isso, alimentam cada vez mais relacionamentos abusivos que se baseiam em dogmas.


Não vão nos calar!


Laura Margutti
Jovem escritora, feminista, fanática por livros e desde sempre apaixonada por poesias, ela começou a escrever aos 12 anos de anos. Em 2018, publicou seu primeiro livro, "Brincando de não ter medo", pela Editora Viseu.
 



Título: TARDE DEMAIS - 1ªED.(2018)
Título original: Too Late
ISBN: 9788501115003
Idioma: Português
Encadernação: Brochura
Formato: 14 x 21 x 2,1
Páginas: 384
Ano de edição: 2018
Edição: 1ª

Aautor: Colleen Hoover
Ttradutor: Alda Luiza de Lima Ferreira






Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os Colegas - Lygia Bojunga

Para o mês das crianças, "Livro Bacana"* Quando estava na frente da estante, procurando qual livro poderia indicar para este mês das crianças, não tive a menor dúvida de qual deles escolher: Os Colegas , de Lygia Bojunga.  O primeiro livro dessa escritora gaúcha, ganhador de vários prêmios, dentre eles o prêmio Jabuti, é um dos meus livros favoritos da vida. Motivo? Eu só o conheci na fase adulta e ele tocou profundamente a criança que existe em mim.  Essa obra-prima da literatura infantojuvenil brasileira tem como pano de fundo a nossa tradicional e popular festa de Carnaval e o mundo circense. Além disso, as personagens principais são animais, o que dá o tom de fábula para história. Assim, somos apresentados aos cachorrinhos Virinha, Latinha e Flor-de-lis; ao coelho Cara-de-pau e ao urso Voz de Cristal.  Por intermédio da sua descrição física e psicológica, as personagens vão sendo construídas por Bojunga, dentro do universo ficcional. No decorrer da narrativa, o leitor pod

"L'enfer, c'est les autres": um convite à leitura da representação do feminino no romance teatral sartreano em tempos pandêmicos [1]

Considerando que a literatura reflete os valores do tempo histórico em que se insere, entendemos que a expressão do teatro traz para o palco a fruição do discurso literário em sua profunda potência. Sob tal perspectiva, temos manifestações desse viés artístico na contemporaneidade dignos de nota. O beijo no asfalto , por exemplo, peça teatral de Nelson Rodrigues, teve mais uma adaptação recente ao cinema (2017), trazendo os bastidores do filme que encenam a peça, numa discussão entre várias vozes, mesmo as mais caladas, visto que o enredo transcorre às vésperas da ditatura militar do Brasil (1960). A temática de gênero, o controle ideológico por parte dos meios de comunicação e a condição humana como questionamentos do viver e do existir tornaram este trabalho mais que uma mera adaptação. Da mesma forma, os elementos há pouco elencados fazem do teatro de Sartre uma profunda fonte de inspiração para as questões relativas ao existencialismo tanto no final do século XX, quanto para a ref

O relógio das estrelas: Suzana Amaral e Clarice Lispector - Cassiana Lima Cardoso

Dedico aos amigos do cineclube Raul Lopes, especialmente à Lília Olmedo Monteiro, nossa anfitriã.   No livro “A Hora da estrela” (1977), de Clarice Lispector, a personagem Macabéa apaixona-se pela palavra efeméride , termo que Seu Raimundo, também um amante discreto das palavras difíceis, a manda copiar “com sua letra linda”.  Fortuna e infortúnio têm suas nuances. Não por acaso, Eduardo Portella, autor do prefácio do livro, intitulado “O grito do silêncio”, costumava dizer: “o acaso existe”. E previsto ou imprevisto, (não tem a pretensão esse texto, de mais ou menos oitocentos caracteres, quitar a discussão filosófica acerca da questão do destino), morre Suzana Amaral, autora da obra-prima, que é a versão cinematográfica da história de nossa Maca, justamente no ano do centenário de Clarice Lispector. O filme é de 1985, lançado em 1986. Decerto, ambas, escritora e cineasta, habitarão a mesma constelação em nossa memória. Duas mulheres notáveis, que realizaram obras de arte da mesma est