Pular para o conteúdo principal

O que é o humano?




Neste pequeno texto proponho uma reflexão sobre o humano. Os espanhóis, quando chegaram à América, se perguntaram se os indígenas eram humanos, se tinham alma, portanto, se deveriam ser batizados. É conhecida a discussão envolvendo Bartolomé de las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda, querela que levou à Bula papal de 1537. (Essa história inspirou Jean-Claude Carrière a escrever A controvérsia, levada ao teatro no Rio de Janeiro em 2000, direção de Paulo José, com Mateus Nachtergaele e Otávio Augusto). A afirmação da humanidade dos índios não impediu o genocídio, em nome da religião e, sobretudo, do comércio. Defensor dos índios, Las Casas acabou sugerindo que se trouxessem africanos para trabalhar aqui... O tráfico negreiro e a escravidão, mais uma vez, suscitam a questão sobre o humano. Se os europeus considerassem que os africanos eram homens como eles, não poderiam tê-los transportado de maneira tão insalubre e degradante a ponto de muitos morrerem antes de desembarcar na América. Para justificar o comércio de homens, tornando-os mercadorias, inventaram as mais torpes teorias. Novo genocídio é perpetrado.

Durante séculos, os negros foram escravizados em vários países da América, vivendo nas piores condições. Em 1851, durante a Convenção dos Direitos das Mulheres, em Akron, Ohio, Sojourner Truth pediu a palavra. A reação da plateia foi de estupor por ela ser negra. Em seu discurso ela pergunta: “Eu não sou uma mulher?” Ela que pariu onze filhos e não pode conservar nenhum, ela que trabalhou no campo, que tem tanta força quanto os homens, por que não teria ela direito ao voto? Por que só as mulheres brancas teriam esse direito? Essa frase, que continua ecoando até hoje, foi o título que a feminista estadunidense bell hooks deu a seu primeiro livro.

Primo Levi, em É isto um homem? replica a pergunta de Sojourner Truth. Neste que é um dos primeiros livros publicados sobre Auschwitz (em 1947), Levi faz essa pergunta retórica para se referir àqueles seres cadavéricos que sobreviveram e a tantos “muçulmanos”, como ele os chama, que morreram de fome, de exaustão, de doenças. Homens que foram humilhados, aviltados em sua dignidade, condenados à morte de antemão por serem judeus. Genocídio que os alemães, liderados por um estrategista demente, cometeram, com a cumplicidade da maioria.

Pouco depois, em 1950, Aimé Césaire publicou Discurso sobre o colonialismo, no qual associa a infâmia da Shoah ao genocídio indígena e ao tráfico negreiro, fazendo um histórico dos pensadores europeus que exprimiram opiniões racistas em relação aos negros, aos asiáticos, aos semitas (que incluem judeus e árabes). A questão que sempre me coloquei é: até que ponto o horror provocado por este genocídio choca mais porque foi cometido contra uma população branca, europeia, sendo que muitos dos judeus mortos eram escritores, artistas, pessoas ricas e influentes. Isso foi possível porque inventaram uma teoria para justificar o injustificável: os judeus eram donos do dinheiro, além de serem inferiores, nojentos. Todos os povos a serem eliminados são sujos, a limpeza étnica se baseia na metáfora da limpeza.

Césaire aponta os malefícios da colonização e da escravização tanto para as vítimas quanto para os europeus. Ele diz que ninguém coloniza inocentemente, ninguém coloniza impunemente; uma civilização que coloniza é doente. Os colonizadores, ao desprezarem o Outro, ao tratá-lo como uma besta de carga a ser explorada até a morte, tornam-se seres humanos degradados.

O Brasil é uma sociedade fruto desse duplo genocídio. Sua história de violências e de autoritarismo é bem conhecida. Durante a ditadura de 1964-1985, todos os desmandos foram praticados contra os “comunistas”, o Outro que não merecia viver. E muitos foram torturados até a morte, alguns foram “desaparecidos”, as autoridades se recusando a entregar os corpos às famílias para que elas cumprissem os rituais fúnebres. Protegidos pela lei da anistia, nenhum torturador foi punido.

O que sente um torturador? Se, antes, era um ser humano com sentimentos, ele passa por uma transformação negativa, torna-se um ser desprezível. O torturador, o senhor de escravos, o capataz da plantação, o nazista, todas essas pessoas tornam-se piores ao ter a autorização para cometer os crimes que cometeram. A sociedade que continua permitindo a violência contra os negros, os pobres, os periféricos, os pertencentes a minorias como a população LGBT, é uma sociedade doente. Toda essa discussão continua atualíssima porque o policial (ou o homem que faz a segurança de um supermercado ou de um shopping) que assedia, agride, mata um negro, esse homem também é um péssimo ser humano. Combater o racismo estrutural é responsabilidade de todos.

Black Lives Matter, com certeza. Sejamos todos antirracistas.

Eurídice Figueiredo  
Professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal Fluminense
Bolsista de produtividade do CNPq

Comentários

  1. Ótimo texto: suscinto & denso

    ResponderExcluir
  2. Obrigado, Euridice. Lembrei que em História universal da infâmia, Borges ironiza Las Casas por defendido a alma do índio criando o negro sem alma.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Deixe seu comentário:

Postagens mais visitadas deste blog

Os Colegas - Lygia Bojunga

Para o mês das crianças, "Livro Bacana"* Quando estava na frente da estante, procurando qual livro poderia indicar para este mês das crianças, não tive a menor dúvida de qual deles escolher: Os Colegas , de Lygia Bojunga.  O primeiro livro dessa escritora gaúcha, ganhador de vários prêmios, dentre eles o prêmio Jabuti, é um dos meus livros favoritos da vida. Motivo? Eu só o conheci na fase adulta e ele tocou profundamente a criança que existe em mim.  Essa obra-prima da literatura infantojuvenil brasileira tem como pano de fundo a nossa tradicional e popular festa de Carnaval e o mundo circense. Além disso, as personagens principais são animais, o que dá o tom de fábula para história. Assim, somos apresentados aos cachorrinhos Virinha, Latinha e Flor-de-lis; ao coelho Cara-de-pau e ao urso Voz de Cristal.  Por intermédio da sua descrição física e psicológica, as personagens vão sendo construídas por Bojunga, dentro do universo ficcional. No decorrer da narrativa, o leitor pod

Às avessas - Joris-Karl Huysmans

Título:  Às avessas Título original:  À rebours  Autor:   Joris-Karl Huysmans Tradutor:  José Paulo Paes Publicação:   03/11/2011 País:  Brasil Editora:  Penguin Companhia Sinopse*: Publicado pela primeira vez em 1884, Às avessas se consagrou de imediato como uma espécie de bíblia do decadentismo. E seu protagonista Des Esseintes passou a figurar desde então — ao lado de D. Quixote, de Madame Bovary, de Tristram Shandy — na galeria dos grandes personagens de ficção. Herói visceralmente baudelairiano pelo refinamento dos seus gostos, pelo seu ódio à mediania burguesa, pelo solitário afastamento em que dela timbrava em viver, pelo esteticismo e pela hiperestesia de que fazia praça, encarnava ele, melhor ainda que o Axel de L’Isle-Adam ou o Igitur de Mallarmé, os ideais de vida e de arte da geração simbolista, geração na qual a modernidade teve os seus mestres reconhecidos. Opinião do convidado ...  Classificação: 😀  "Às Avessas" é uma obra desafiadora e proporciona uma experi

Acerca da Biblioteca de Português da Sorbonne Nouvelle

Para Borges, o paraíso seria uma espécie de biblioteca [1] . Toda vez que penso nessa frase, a Biblioteca de estudos portugueses, brasileiros e da África lusófona, também conhecida como Biblioteca de Português, me vem à mente. Localizada no emblemático Quartier Latin de Paris, no prédio da Sorbonne, abriga um dos maiores acervos sobre os países lusófonos da França [2] . É uma biblioteca com história secular, testemunha do interesse pelos estudos brasileiros na Europa e da intensa troca entre homens de letras e intelectuais dos dois lados do Atlântico. Ela possui nas suas estantes mais de 25000 títulos, divididos em diversas áreas do conhecimento: língua, literatura, civilização, história, geografia, etc. Tive a honra de trabalhar como assistente de biblioteca naquele lugar durante alguns anos do meu doutorado, entre 2015 e 2018. Período que foi marcado por encontros com livros e com pessoas que aguçaram meu espírito e enriqueceram profundamente minha vivência acadêmica. Entre um encon