Há pouco tempo fui convidada para integrar a publicação de um livro sobre mulheres e pandemia. Estamos confinados há meses, em situações precárias de enfrentamento do vírus – sobretudo quando comparadas aos demais países –, e o assunto urge. Esse convite me instigou e estimulou a pesquisar e escrever sobre as faces da violência contra as mulheres. É inegável que o isolamento social é uma política necessária de contenção do contágio do novo vírus, mas é alarmante o aumento da violência no casal na situação de confinamento com o agressor.
Como professora de literatura, fui logo pensando em livros de autoria feminina que exemplificassem os roteiros de violência baseada no gênero. E, para a minha surpresa, encontrei – entre as minhas leituras recentes – muitos romances, cenas e diálogos impressionantes sobre o tema. Sou fascinada pela literatura brasileira contemporânea escrita por mulheres! Os quatro exemplos que abordei no capítulo do livro Pandemia e mulheres foram: A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha (2016); O peso do pássaro morto, de Aline Bei (2017); Mulheres empilhadas, de Patrícia Melo (2019); e Sinfonia em branco, de Adriana Lisboa (2013). Recomendo fortemente a leitura dos quatro!
Hoje falarei um pouquinho mais de Mulheres empilhadas, livro impactante de Patrícia Melo, publicado em 2019. O título funciona muito bem, construindo a imagem terrivelmente nítida de cadáveres sobre cadáveres, corpos femininos, de mulheres barbaramente assassinadas. Um dos motivos que me chama a atenção em Mulheres empilhadas é a sua interface com a realidade, denunciando – mas não só – o terrorismo de gênero. A autora traz à tona doze casos reais de feminicídio. É claro que eu procurei caso por caso, li as notícias e os depoimentos, mas confesso que adquirir essa consciência é algo assustador.
A escrita de Melo é crua e objetiva, sem rodeios e metáforas sofisticadas, enfeites ou sugestões, e a trama da narrativa é elaborada em diferentes chaves de leitura. A narradora-protagonista tem perfil psicológico engenhoso: uma advogada paulista, que acaba trabalhando diretamente em casos de feminicídio no Acre, assombrada por uma lembrança traumática, fugaz e pouco elaborada do assassinato da mãe pelo pai. Para completar o quadro de violências somatizadas, a advogada sofre agressão psicológica e física do namorado, a quem identifica como um potencial feminicida: “Você não imagina que um cara como este, que estuda Wittgenstein e pratica ioga, vai acabar enfiando a mão na sua cara, no banheiro de uma festa de fim de ano de advogados” (Melo, 2019).
A protagonista reflete como foi possível ela – advogada, especialista no assunto, inteligente, independente etc. – não ter se dado conta dos sinais que os homens abusivos inconscientemente demonstram. Esse momento de reflexão na história é importante porque evidencia o caso de mulheres que não se reconhecem como vítima de violência e que acabam por transformar algo negativo em positivo: “O que ele estava me dizendo, naquele momento, é que de forma geral as mulheres são burras. Mas claro que, sob efeito da sedução e envenenada pelos meus próprios hormônios, não me dei conta disso. Pior: inverti os sinais, transformei o negativo em positivo” (Melo, 2019, p. 12).
“Matar mulheres é um crime democrático”. Eis a conclusão da protagonista, por notar não haver um padrão de fácil reconhecimento do agressor. O feminicida pode ter qualquer profissão – “Profissão do acusado: Militar. Eletricista. Servente de pedreiro. Lavrador. Funcionário público. Estudante. Matar mulheres é um crime democrático, pode-se dizer. Eu fazia minhas próprias tabelas que, no futuro, transformariam aquelas estatísticas em mais estatísticas” –, qualquer escolaridade – “Grau de instrução do acusado: Semianalfabeto. Superior completo. Analfabeto. Nível universitário.” (idem) –, e qualquer relação com a vítima – “Marido. Namorado. Amante. Ex-amante. Irmão. Cunhado. Padrasto. Em apenas cinco casos, o assassino não conhecia a vítima”.
Aquele homem sensível, culto, ambientalista, zen, progressista, feminista (!), pode, ao sentir que perdeu o controle sobre a mulher, revelar a sua faceta violenta antes adormecida. As pesquisas têm mostrado que, enquanto não mudarmos os padrões de conduta violentos, frutos da cultura do machismo, por meio de políticas públicas e de grupos reflexivos para homens, continuaremos fabricando potenciais agressores, perpetuando o feminicídio como crime democrático. A mídia, a arte, o cinema, a literatura também podem desempenhar papeis relevantes no combate à violência contra a mulher, mesmo que esse não seja um fim em si. Para @s interessad@s no assunto, recomendo a leitura das Notas Técnicas sobre violência de gênero e estupro, publicadas por pesquisadores do IPEA, disponíveis no site do Instituto. Os dados das pesquisas, assim como a leitura de Mulheres empilhadas, são angustiantes.
Anna Faedrich é docente de Literatura Brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordena o projeto de pesquisa "Literatura de autoria feminina na belle époque brasileira: memória, esquecimento e repertórios de exclusão". Organizou, em parceria com a Fundação Biblioteca Nacional, as reedições do romance "Exaltação" (1916), de Albertina Bertha; do livro de poesia "Nebulosas" (1872), de Narcisa Amália; e da coletânea de crônicas "Dois dedos de prosa: o cotidiano carioca" por Júlia Lopes de Almeida.
E-mail: anna.faedrich@gmail.com
Agradeço pelo convite e oportunidade de participar desse blog tão lindo!
ResponderExcluirAnna, minha querida amiga, o Blog estará sempre aqui de portas abertas para recebê-la.
ExcluirObrigado pela generosidade ao compartilhar um texto tão importante, principalmente neste momento de total descontrole sanitário e social. Mille mercis!
Fora as sugestões de leitura ... anotando tudo aqui! Beijos.
ExcluirMuito bom!
ResponderExcluirA Anna arrasa, né!
ExcluirExcelente, Anna!!!
ResponderExcluirConcordo com você, Luciano! O texto está excelente. Obrigado, Anna por compartilhar com a gente aqui!. Beijos
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