“A peste é encarada como algo inexorável, inevitável. Os despreparados são apanhados de surpresa; os que observam as precauções recomendadas também são atingidos. Todos sucumbem quando a história é contada por um narrador onisciente (...)”
Susan Sontag – A doença como metáfora.
Susan Sontag, em A doença como metáfora, analisa o conto de Edgar Allan Poe, “A máscara da Morte Rubra”, para revelar como as várias epidemias da humanidade são metaforizadas na vida e na literatura. Sobretudo, esses surtos revelam a vertente do inesperado, do que não pode ser contido nem controlado, e que, imune à fé ou à razão, é capaz de abalar tanto o racionalismo e a lógica da sociedade tecnicista e tecnológica, quanto as fantasias e crenças mais arraigadas no imaginário popular. Embora crédulos e céticos pareçam firmes em suas concepções, as incertezas são capazes de assombrar um e outro.
No conto de Poe, o príncipe Próspero ergueu muros, grades e ferrolhos em torno de sua fortaleza para conter lá fora uma epidemia, conhecida como “Morte Rubra”, que abatia e condenava os cidadãos comuns, enquanto ele desfrutava com seus fidalgos do luxo, das diversões, das festas e banquetes do lado de dentro. Os obstáculos erguidos pareciam dominar o indomável, pelo menos por um tempo, mas um dia a peste penetrou sorrateiramente no baile a fantasia, participando da mascarada da Corte e atingindo o monarca no meio de sua celebração. O que Poe parece concluir é que, mesmo quando os sujeitos, especialmente os poderosos, pretendem ignorar as catástrofes do lado de fora de suas cercas, o mal, ainda que disfarçado por uma máscara festiva, acaba por romper a muralha da fantasia e expor, diante de todos, a face mais sombria da realidade.
A literatura, ao longo dos séculos, tematizou a questão das grandes epidemias que assolaram nosso mundo, quase sempre para metaforizar a natureza humana e desmascarar a nossa faceta mais íntima diante de eventos catastróficos e inesperados. Dentre as obras mais célebres, La peste, do escritor franco-argelino Albert Camus, costuma ser a mais citada pela crítica e pelos leitores.
Em 2020, com o advento da epidemia de Covid-19, a obra de Camus foi frequentemente mencionada no meio jornalístico e literário no Brasil e no mundo. No cenário político brasileiro, um fato muito peculiar trouxe a público um termo usado no livro de Camus, que teria servido de “mensagem subliminar” para que um ex-Ministro da Saúde, em sua despedida do cargo, chamasse o presidente da República de “extremamente humanista”. Na ocasião, o termo parecia ser um grande elogio, não fosse o sentido original aplicado no contexto de A peste, de onde a expressão foi retirada:
(...) As pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: “Não vai durar muito, seria estúpido.” (...) A tolice insiste sempre, e nós a compreenderíamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções. (...) Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres e jamais alguém será livre enquanto houver flagelos. (CAMUS. A peste. Rio de Janeiro/ São Paulo: Ed. Record, 2017.)
Retomando a ideia da peste como metáfora, são muitos os príncipes Prósperos, na Literatura ou na História, que acabaram criando para si mesmos uma fortaleza de ilusões, prestes a ruir diante dos flagelos e das calamidades inesperadas. O negacionismo é o instinto mais primitivo de sobrevivência do demasiado humano, um subterfúgio para não evidenciar a própria incapacidade de enfrentar algo que escapa à compreensão. Negar é uma reação de impotência diante do mal, especialmente se contra ele ainda não existirem armas suficientemente eficazes.
Num texto literário mais antigo, do século XVII, há uma fábula intitulada “Les animaux malades de la peste” (Os animais doentes da peste), que integra as Fables Choisies (1668), de Jean de La Fontaine, que traz o tema da epidemia para explorar os sentidos metafóricos que os períodos de crise podem trazer à tona. Escritas em versos rimados, as fábulas de La Fontaine partem do universo dos bichos para servir, segundo afirmou o escritor, de invólucro pueril para “importantes verdades” do mundo dos homens. Com uma construção muito próxima à parábola, as histórias encenam as injustiças praticadas pelos fortes e poderosos, deslocando-as para o plano aparentemente neutro da fabulação, a fim de modalizar críticas mais contundentes às relações de poder que regem a sociedade.
Na fábula de La Fontaine, a peste é vista pelos animais como castigo divino, derramado sobre todos em decorrência de algum pecado individual que precisa ser expurgado. O leão convoca uma assembleia com todos os bichos e é o primeiro a falar sobre suas falhas, confessando que havia não só comido muita “carneirada” como até mesmo os cães que guardavam o rebanho. Os outros animais, no lugar de falarem sobre seus crimes, tratam de absolver o leão da culpa, justificando que tanto carneiros quanto cães eram “raça lorpa e vilã”, que devorá-los era um ato meritório e justo.
Vendo o indulto do rei das selvas, por ato tão mais cruel que o seu, um burro animou-se a confessar que havia comido um pouco de capim no prado de um convento, ato que foi logo considerado nefando pela assembleia, pois comer erva alheia, segundo os animais, era crime indefensável. O burro foi sumariamente executado e a moral da fábula conclui: “Sejas tu miserável ou forte/ Áulicos te farão detestável ou puro”.
Os áulicos, cortesãos que integram o palácio real, tendem a absolver o rei, mesmo que seus atos sejam os mais cruéis possíveis, e a encontrar outro alvo que faça a expiação dos crimes do monarca. Para o rei, desviar a atenção da Corte daquilo que ele não pode controlar – a peste – e propor um espetáculo de sacrifício controlado, sob a aparente decisão da maioria, é uma forma de manutenção da legitimidade de seu poder, abalado pela voracidade e imprevisibilidade da peste.
Os trechos aqui incluídos da fábula de La Fontaine foram traduzidos por Machado de Assis. Com o título de “Os animais iscados da peste”, o escritor publicou a tradução em seu livro de poemas Ocidentais (1901), no qual dialoga com vários autores da Literatura Ocidental cujas influências foram essenciais em sua formação de escritor. O resgate da fábula de La Fontaine no livro machadiano, para além de homenagear o escritor francês, evoca também o conturbado período de epidemias que marcaram o início do século XX no Brasil e, especialmente, na capital do país.
Num recorte específico do cenário brasileiro, os surtos epidêmicos fizeram parte do cotidiano nacional e foram matéria de reflexão na literatura de alguns de nossos escritores. O século XIX já havia sofrido sob o flagelo das muitas epidemias que viriam a povoar a Capital Federal – o Rio de Janeiro. Contudo, o crescimento da metrópole e a alta densidade populacional tornaram o século seguinte ainda mais desafiador, com sobreposição de doenças e alta taxa de mortalidade, como podemos ver numa matéria sobre os óbitos na cidade, do dia 25 de maio de 1904, publicada na Gazeta de Notícias, jornal carioca de vasta tiragem diária:
Na semana decorrida de 16 a 22 do corrente houve 361 óbitos, dos quais 3 por febre amarela, 45 por tuberculose pulmonar e nada menos de 71 por varíola!
Não houve nenhum caso de peste [bubônica], estando apenas 1 doente dessa moléstia em tratamento no hospital Paula Candido.
No hospital de São Sebastião estão em tratamento 5 doentes de febre amarela e 152 de varíola!
No mesmo ano, estados do Norte e do Nordeste teriam inúmeros casos de peste bubônica, que se espalhariam com rapidez para outras localidades. É a Gazeta de Notícias, em matéria assinada por jornalista sob o pseudônimo de Frei Gil, que anuncia, em março de 1904, o modo de combate à pandemia adotado pela população do Pará. O articulista comentaria como o povo paraense havia rompido os cordões de isolamento e a quarentena para assistir no teatro a um espetáculo chamado “A bubônica”, em que se faziam pilhérias sobre a doença: “Decididamente não há mais fronteiras para o ridículo. A pilhéria é que domina, é a vencedora que passa triunfante piparoteando narizes solenes e ventres venerandos, enfarinhando todas as caras respeitáveis até a cara hedionda da peste bubônica” (14 de março de 1904). A população apegava-se às distrações e ao entretenimento para desligar-se de uma situação grave de pandemia, levando ao pé da letra o lema “Rir é o melhor remédio”.
Em 1908, o Rio enfrentaria o agravamento dos casos de varíola, com cerca de 6.300 indivíduos mortos pela doença na cidade. Diante do descaso dos órgãos sanitários do Governo, a Gazeta de Notícias lançou uma franca campanha, juntamente com outros jornais, para estimular a vacinação das pessoas da cidade, dada a resistência de muitos e a inércia da Diretoria Geral de Saúde Pública. A vacina criada pelo médico Edward Jenner, conhecida desde 1798, já havia comprovado sua eficácia, mas ainda existia muita fantasia em torno do imunizante, feito a partir da varíola bovina. Havia um medo infundado em parte da população de que a inoculação de uma substância proveniente de doença bovina pudesse transformar pessoas em vaca ou em outros animais.
O empenho da Gazeta na campanha não se limitou à propaganda deimunização, mas o próprio escritório do jornal foi transformado em posto de vacinação, conforme atestamos na matéria publicada em 20 de março de 1908, em que o redator se esforça para descrever quantas pessoas passaram pelo prédio do jornal para se vacinar, incluindo crianças e mulheres, como se cobrasse aos homens, os menos imunizados, uma dose de coragem para tomar a decisão. Incrivelmente, os órgãos de Imprensa pareciam mais empenhados do que o poder público em desmitificar o ato de vacinação e convencer o povo sobre sua eficácia.
Nos anos seguintes, a Gazeta continuaria a campanha do imunizante de Jenner, usando os meios de que dispunha para convencer o público a tomar a vacina. Assim, em 27 de fevereiro de 1910, o escritor João do Rio, que integrava a equipe de literatos e jornalistas da Gazeta, publicou na primeira página um conto chamado “A peste”, tentando, pelas vias da ficção, tocar mais profundamente o imaginário da população do Rio.
Capa da primeira página da Gazeta de Notícias, onde foi publicado o conto de João do Rio em 27 de fevereiro de 1910
O narrador do conto de João do Rio busca, de início, identificar-se com o público, assumindo um perfil negacionista, contrapondo-o ao excesso de preocupação de outra personagem, o melhor amigo do protagonista:
Um mês antes ria dessa epidemia. Para que pensar em males cruéis, nesses males que deformam o físico, roem para todo o sempre ou afogam a vida em sangue podre? Para que pensar? E Francisco, o meu querido Francisco, a quem eu amava como a melhor coisa do mundo, pensava todo o dia, lia os jornais, tomava informações. “A média de casos fatais é de trinta por dia. Ela vem aí, a vermelha”, dizia. E já organizara um regime, tomara quinino, tinha o quarto cheio de antissépticos, os bolsos com pedras das farmácias para afastar o vírus. Coitado! Era impressionante. Eu bem lhe dizia:
- Mas criatura, não tenhas medo. Andamos todo o dia pelas ruas, vamos aos teatros. Qual varíola! Vê como toda gente ri e goza. Deixa de preocupações. (JOÃO DO RIO. A peste. Dentro da noite. 1910)
Todo o percurso da narrativa de João do Rio tenta criar uma empatia do leitor pela situação do personagem. O conto segue pelo viés da negação, mas, aos poucos, a realidade da epidemia começa a cercar os dois amigos pelas ruas da cidade, os enterros são anunciados com mais frequência e os doentes passam a circular à vista de todos. O flagelo da doença se alastra, até que se torna impossível descrer do mal que se manifesta no entorno de ambos. O protagonista, vacinado, não contrai varíola, mas Francisco, o amigo medroso, opta pelas panaceias oferecidas pela indústria farmacêutica da época, nada eficazes contra a praga: regime, quinino, antissépticos, e acaba por ser infectado. O clímax da história tem forte apelo dramático, pois o personagem-narrador passa a contar com detalhes o horror da visita ao hospital, onde vê o amigo coberto de chagas da varíola e os corredores lotados de pacientes e parentes das vítimas.
A Ciência, de certo modo, quase nunca conseguiu sozinha convencer grande parte dos leigos a perder o medo das vacinas ou a se precaver das moléstias de forma adequada. Muitas vezes a propaganda dos veículos de Imprensa e a Literatura foram alguns dos meios usados para vencer o discurso do medo e da ignorância. Se a História se constitui pelo embate de narrativas, a metáfora literária parece ser um importante instrumento que, pelo viés da reinvenção, tenta romper barreiras e muros construídos pela fantasia negacionista dos demasiadamente humanos de ontem e de hoje.
Males como a varíola e a peste bubônica foram erradicados ou neutralizados há tempos. Entretanto, ainda não existem medidas plenamente eficazes contra as epidemias do imaginário, que mantêm os medos mais pueris incubados na mentalidade dos povos, no inconsciente coletivo, prontos para eclodir ao primeiro indício de um caos iminente. Diante de tempos tão desafiadores, amplia-se a necessidade diária de fantasia no interior das pessoas, ocasião fecunda para os Prósperos desse mundo, que vão construindo suas plateias - os áulicos da mascarada real ou os da assembleia dos leões -, seja para entretê-las, seja para torná-las prisioneiras da tirania do riso ou da opinião. Por isso mesmo, as doses literárias precisam ser administradas com cada vez mais frequência, para ficarmos protegidos contra a precariedade da imaginação.
Flávia Amparo é Professora Associada de Literatura Brasileira da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Professora Titular do Colégio Pedro II (CPII). Sua pesquisa concentra-se na literatura do Séc. XIX, especialmente na poética de Machado de Assis, e na formação do leitor literário. Integra o corpo docente da Pós-Graduação em Estudos Literários da UFF e o Mestrado Profissional em Práticas de Educação Básica do CPII.
Pertinente. Atual. Excelente texto.
ResponderExcluirMuito mesmo, Vladimir!
ExcluirTexto da maior importância ao recuperar narrativas e momentos históricos que nos ajudam a (re)pensar a nossa situação atual, não apenas no Brasil, como no mundo. São tempos humanamente difíceis, só mesmo a arte e a literatura para nos dar o alento de que precisamos.
ResponderExcluirConcordo com você, Luan Sabino. Flávia Amparo traz um momento de reflexão no meio de todo o caos que estamos vivendo. Obrigado pela visita!
ResponderExcluirTexto maravilhoso! Apresentando a importância da Literatura e suas metáforas em situações como a que estamos passando na atualidade. Um recorte histórico muito relevante. Parabéns à professora Flávia e ao blog pelo texto primoroso!
ResponderExcluirObrigado pela visita, leitura e comentário!
ExcluirTexto impressionante!! Descreve bem a arrogância dos príncipes prósperos, o medo infundado de vacinas desde há muito criado, a legitimação do poder do monarca diante do descontrole da peste. A repetição de uma história da vida na literatura de João do Rio, Camus, Lá Fontaine... A literatura deve ser aplicada também! Precisamos. Bj, Ana Claudia
ResponderExcluirObrigado pela visita e excelente comentário "Poneman?!".
Excluir