Clarice Fortunato estreia na literatura com o pé direito. A leitura de Da vida nas ruas ao teto dos livros (2020) é uma dessas experiências das quais não se sai incólume. O livro, lançado recentemente pela editora Pallas, integra a tese de doutorado da autora.
No conhecido ensaio Um teto todo seu, Virginia Woolf destaca a importância da mulher ter o seu próprio espaço para escrever, mas, se pensarmos na realidade brasileira, podemos nos perguntar: E quando não se tem nem um teto para viver? E quando é preciso pegar comida no lixo e beber água de poça para não morrer de fome e sede? Esta foi a triste realidade da escritora Clarice Fortunato durante parte de sua infância. Sua dolorosa experiência se tornou uma impactante narrativa em que traumas individuais fazem eco a traumas coletivos e ancestrais.
Fortunato nasceu em 1976, no interior do Paraná, filha de pai negro, boia-fria, analfabeto e mãe branca, de olhos azuis. O casal teve 17 filhos, mas apenas dez sobreviveram. Depois da morte do pai, ao que tudo indica assassinado, a menina Clarice, ainda com cinco anos, acaba sozinha com a mãe e, sem moradia, as duas se tornam andarilhas, sujeitas a intensas violências físicas e simbólicas. Mãe e filha enfrentam então a fase mais difícil de suas vidas e, após uma série de privações, conseguem um domicílio graças ao auxílio de assistentes sociais. Posteriormente, moram também com uma das filhas mais velhas. Entretanto, as dificuldades persistem e a narradora, apesar de muito jovem, se torna cuidadora da mãe, já doente e cega, com quem mantém uma relação fusional que configura seu único vínculo afetivo. É apenas após o falecimento da mãe que a autora-narradora consegue dar prosseguimento a sua escolaridade, apesar de ainda ter se deparado com muitos empecilhos, como a exclusão, o racismo e a necessidade de conciliar estudo e trabalho.
O livro é composto por breve preâmbulo que esclarece o contexto de surgimento da narrativa e frisa o viés coletivo do trabalho, buscando ir além das mazelas individuais vivenciadas pela narradora. A preocupação com o caráter social e coletivo da experiência é afirmada: “Meu intuito é instigar uma reflexão sobre o peso de ser mulher negra e pobre no Brasil e o impacto desses fatores no seu cotidiano de cenário miserável e violento. Refletir sobre as relações sociais da contemporaneidade, onde perduram resquícios das práticas sociais do período colonial escravocrata. ” (FORTUNATO, 2020, p. 20). A autora alcança seu objetivo, sua história é também aquela de muitas mulheres brasileiras negras, pobres e periféricas.
Da vida nas ruas ao teto dos livros nasce de uma premência e de uma necessidade sentidas no momento em que ela se encontrava em Exeter, na Inglaterra, para realizar o programa de doutorado sanduíche. A narradora diz ter sucumbido a vozes impetuosas que insistiam: “Escreva sua história, escreva a sua história, escreva a sua história...” (FORTUNATO, 2020, p. 15). O gatilho para a escrita de si surge então a partir de um distanciamento geográfico: “A viagem ao exterior era também um deslocamento para fora de mim.” (FORTUNATO, 2020, p. 18). Esse processo passa por um resgate da memória coletiva e de um espólio da dor que remete à escrevivência de Conceição Evaristo e aos trabalhos de Carolina Maria de Jesus, influências reivindicadas por Fortunato.
A narradora de Da vida nas ruas ao teto dos livros desenvolve uma notável capacidade de resiliência, palavra tão desgastada hoje em dia e esvaziada de sentido devido ao uso recorrentemente equivocado na mídia nacional e também internacional. Vale lembrar que resiliência é um termo proveniente da Física e diz respeito à propriedade de elasticidade de certos corpos. A noção migrou para o campo da Psicologia e começou a ser estudada de forma mais sistemática a partir da década de 70 do século XX. Trata-se, assim, de um processo intersubjetivo que se organiza como possível resposta após traumatismos e refere-se à retomada de uma evolução psíquica do eu. Como destaca o neuropsiquiatra francês, Boris Cyrulnik, grande estudioso da questão, a resiliência engendra um neodesenvolvimento, uma vez que não há como se retornar ao suposto estado anterior ao trauma.
No caso da narradora-autora de Da vida nas ruas ao teto dos livros, como o título indica, o processo de construção da resiliência está diretamente vinculado ao desenvolvimento intelectual. Na falta de teto e diante das exclusões do mundo, a biblioteca e os livros se tornam seu refúgio e a elaboração da escrita de si parece integrar a construção do processo intersubjetivo de resiliência. Como afirma Fortunato: “Se meu navio negreiro foi a rua, com a minha mãe, a minha escrita é libertação, é catarse: uma hermenêutica do eu, muito além de toda teoria.” (FORTUNATO, 2020, p.109).
Além de escritora, Fortunato é atualmente professora e sua voz também contribui para libertar as novas gerações dos grilhões do silenciamento. Ela é uma trânsfuga de classe, no sentido atribuído pelo sociólogo Pierre Bourdieu ao se referir a uma mobilidade social ascendente através da via escolar. Esse afastamento do mundo de origem pode gerar impactos afetivos importantes, frequentemente associados à culpa e a um estranhamento sentido no contexto de origem, engendrando um ser clivado entre dois mundos que se opõem. Esse sentido de trânsfuga social é vivenciado pela autora-narradora no momento em que vai visitar uma tia em Vitória da Conquista (BA). Há alegria e emoção no reencontro, mas também angústia e preocupação em relação ao real distanciamento existente entre o mundo da família de origem e o seu mundo atual: “No retorno para casa, um turbilhão de emoções me atormentava. Eu me perguntava se teria sido justo ter ido lá. ” (FORTUNATO, 2020, p. 35)
Na verdade, Clarice Fortunato é muito mais do que uma trânsfuga de classe, ela é resistência e escrevivência. Da vida nas ruas ao teto dos livros é uma obra perturbadora no melhor sentido do termo, como deve ser a boa literatura. Vale a leitura!
Laura Barbosa Campos é professora do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em Literatturas Francófonas e doutora em Literatura Comparada.
Que linda história! Parabéns prof. Laura por nos inspirar com sua história de superação.
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