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Dostoiévski nas telas do cinema

 


Dizer que Fiódor Dostoiévski (1821 – 1881) é um dos escritores mais importantes do cânone romanesco é verdade trivial; que suas obras têm sido, desde o surgimento do cinema, relidas e adaptadas às telas, também não é novidade alguma para muitos amantes da sétima arte. Aliás, Luiz Fernando Carvalho, responsável por importantes adaptações cinematográficas de obras literárias no Brasil, já declarou em entrevista que “Dostoiévski é o maior cineasta do mundo” (CARVALHO, 2017). Assim, o diretor desnuda a relação mais que estreita que o cinema manteve e mantém com a obra do autor d’Os irmãos Karamázov. No entanto, nem sempre essa relação entre filme/romance é tão evidente. Não raro, cineastas empreendem uma espécie de leitura “impura” da obra em que se inspiram (BAZIN, 2018)...

Se quisesse citar filmes cujas narrativas retomam as obras de Dostoiévski de maneira livre, acho que poderia ocupar grande parte do espaço que me resta neste texto apenas com títulos famosos. Lembro ao leitor apenas alguns exemplos: O batedor de carteiras (Pickpocket – 1959), de Robert Bresson; O operário (The Machinist – 2004), de Scott Kosar e Brad Anderson, e Match point (Match point – 2005), de Woody Allen, releem, cada um à sua maneira, o mais conhecido romance de Dostoiévski, isto é, Crime e castigo. Mas é de outro texto do escritor russo que gostaria de tratar aqui, relacionando-o ao filme que rendeu, com justiça, o Oscar de melhor ator a Joaquin Phoenix em 2020. Memórias do subsolo, novela de Dostoiévski incontornável para a compreensão da evolução de sua obra, e Coringa (Joker – 2019), de Todd Phillips e Scott Silver, nos apresentam personagens que merecem ser observados lado a lado: seja pela força de suas personalidades, seja por aquilo que representam metafórica e metonimicamente.  

No filme de Phillips e Silver, Arthur Fleck é um comediante fracassado que, ironicamente, trabalha como palhaço para uma agência de talentos nas ruas de Gotham City. Incapaz de provocar o riso, habilidade essencial para o exercício de sua profissão, Fleck é vítima de uma realidade que o deprime e o conduz à loucura. Acometido por uma rara doença que o faz rir de modo incontrolável, ele é obrigado a apresentar-se semanalmente diante de uma assistente social, única pessoa que, em alguma medida, parece nutrir a mínima compaixão por seu estado. O desequilíbrio emocional de Fleck pode ser associado ao do narrador de Memórias do subsolo, que, igualmente, cresceu sem a presença da família: “Se eu tivesse família, desde criança, não seria como sou agora (...) Eu cresci sem família; por isso, talvez tenha saído assim... insensível” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 109). O narrador da novela de Dostoiévski admite, mesmo que indiretamente, que o homem não é naturalmente “mau”, insensível ou egoísta; se o considerarmos, metonimicamente, como exemplo da espécie humana, diremos que esta se “corrompeu” por razões outras que não dizem respeito a qualquer característica natural/intrínseca. A explicação de que a ausência do seio familiar o transformou em uma pessoa insensível, porém, deve ser entendida com certa reserva, já que se trata de um olhar que o personagem lança sobre si mesmo; falta-lhe, naturalmente, o distanciamento necessário para tecer uma reflexão insuspeita. Por sua vez, Fleck convive com a mãe, de quem cuida, mas a ausência da figura paterna imprime uma marca indelével em sua personalidade doentia. Um de seus objetivos ao longo da narrativa é exatamente descobrir quem é seu verdadeiro pai, e essa é uma das razões pelas quais sua vida parece ainda ter algum sentido.

O cenário político de Coringa não deve ser ignorado. Na verdade, essa é uma marca que particulariza a obra e que nos permite estabelecer um diálogo próximo com nossa realidade. Afinal, Gotham City não é um espaço distópico e irreconhecível. Trata-se de uma típica cidade-grande do mundo capitalista, onde cada um tenta sobreviver como pode, inclusive Arthur Fleck. Nesse universo, em que a figura do indivíduo se sobrepõe à ideia de coletividade, é preciso possuir características valoradas pelo senso comum: beleza, dinheiro, inteligência etc. Fleck é o avesso do que consideramos admirável; é metonímia do que deve ser desprezado e esquecido; é representação dos traços mais fiéis do “homem do subsolo”, renegado e humilhado por uma sociedade da qual, de alguma maneira, ele também faz parte. Por isso, a autodepreciação é característica que parece “natural” a esse tipo de sujeito: “...quer me desprezando, quer colocando as pessoas acima de mim, eu baixava os olhos diante de quase todos que encontrava” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 57). O único “problema” é que Fleck não está sozinho. Na verdade, esses “homens do subsolo” constituem uma grande “massa” de indivíduos, porque são a metáfora do homem comum; o homem sem qualidades, para lembrarmos da icônica personagem de Robert Musil. Ora, não é difícil imaginar que, uma vez reunidos e alimentados pela revolta, esses sujeitos estarão dispostos a concordar com as palavras do narrador de Memórias do subsolo, para quem “...amar apenas a prosperidade é, de certo modo, até indecente. Bem ou mal, quebrar às vezes algo é também muito agradável” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 48). Aqui, há um desejo explícito de embate, mas, sem dúvida, de maneira prática, Arthur Fleck vai muito além do inconformismo teorizado pelo personagem dostoievskiano. A violência literal é a única forma encontrada por Fleck para expressar sua revolta contra o mundo.

Em Coringa, parece que estamos diante de uma espécie de “revolta egocêntrica” (que se difere, portanto, daquela revolta coletiva pensada por Albert Camus), uma vez que a narrativa é centrada no indivíduo. É Fleck que se sente fatigado pela situação humilhante em que vive, indignado com o fato de não existir aos olhos do mundo; é ele que, munido de um revólver que ganhara de um amigo do trabalho, dá início a uma onda de assassinatos pela cidade. Entretanto, pouco a pouco, seus crimes adquirem um sentido coletivo, o que, aliado ao inconformismo de uma população mergulhada na profunda desigualdade social, possibilita o nascimento de uma rigorosa revolta popular. Essa revolta enxerga na figura do Coringa um líder poderoso. Através da violência, o personagem consegue, finalmente, alcançar um lugar de destaque no mundo que, durante toda sua existência, o humilhou e o esqueceu. É no mínimo interessante notar que nessa obra há uma espécie de progressão da revolta, que se desloca do espaço particular para encontrar morada no espaço coletivo daqueles que brigam literalmente por qualquer noção de representatividade efetiva.          

Se não é possível afirmar que o filme de Phillips e Silver toma a obra de Dostoiévski como uma de suas inspirações principais, é fora de dúvida que Memórias do subsolo é novela germinal a partir da qual, como afirmou Joseph Frank, biógrafo de Dostoiévski, se criou um tipo de personagem que, à semelhança de um Hamlet, Don Juan, Dom Quixote ou Fausto, se tornou arquétipo revisitado em diferentes épocas (FRANK, 2013). As origens dessas personagens arquetípicas são, quase sempre, apagadas pelo senso comum. Em outras palavras, é como se elas existissem “desde sempre”, o que apenas ratifica o tamanho de sua importância. De certo modo, em diferentes graus, nós nos identificamos com esses sujeitos, o que é uma das razões pelas quais eles se perpetuam, travestidos de nomes os mais diversos, ao longo da história da ficção. O interesse pela obra de Dostoiévski demonstra, enfim, que os principais temas de que ele tratou continuam (e possivelmente continuarão) a instigar leitores e espectadores. Estes, quase sempre, não desejam apenas desfrutar de efêmeros momentos de prazer quando leem um livro ou assistem a um filme, mas, sobretudo, conhecer melhor a si mesmos. Nesse sentido, as palavras de Oscar Wilde se impõem: “a arte reflete o espectador, e não a vida” (WILDE, 1981, p. 8).

 

REFERÊNCIAS:

BAZIN, André. O que é cinema? Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Ubu Editora, 2018.

CARVALHO, Luiz Fernando. “Há um rebaixamento cultural, diz diretor Luiz Fernando Carvalho”. Folha de São Paulo: São Paulo, 2017. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/01/1849754-ha-um-rebaixamento-cultural-diz-diretor-luiz-fernando-carvalho.shtml>. Acesso em 10 de jan. 2021

CORINGA. Direção: Todd Phillips. EUA: Warner Bros. Pictures, DC Films, Joint Effort, Bron Creative, Village Roadshow Pictures, 2019. 1 DVD (122 min.), son., col., legendado.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2009.

FRANK, Joseph. Dostoiévski: os efeitos da libertação, 1860 a 1865. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Edusp, 2013.

WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Tradução de Oscar Mendes. São Paulo: Abril Cultural, 1981.


Paulo Mendonça e doutor em Estudos de Literatura (UFF) – Mestre em Estudos de Literatura (UFF) – Graduado em Letras (UFF) – Professor de Francês do Ensino Básico – Mediador do Curso de Letras da UFF/CEDERJ.


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