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S. e o jogo da ficção

 

Até hoje me surpreendo quando vejo meus alunos, uma geração que cresceu na era da informática, levando adiante o fetiche pelo livro de papel. Ainda lembro bem da sombra que pairou sobre o mundo da impressão com o lançamento dos primeiros modelos populares de e-reader. Veiculavam que o papel seria, em breve, coisa do passado. Os anos passaram, a acessibilidade digital se multiplicou exponencialmente, mas as gráficas não deixaram de rodar.

Não sei se são as capas coloridas, o cheiro do papel, as memórias sedimentadas em um livro de sebo ou o efeito mágico de ver uma estante organizada, mas algo atrai e prende o ser humano à leitura analógica. E, por isso, eu sempre me senti algo herege nesse culto literário: sempre fui um adepto do PDF. Com a chegada do Kindle, reforcei ainda mais o meu gosto pela praticidade do digital, raramente adquirindo cópias físicas. Ao menos até conhecer o livro que despertou em mim esse fetiche atávico pelo papel: S., de Doug Dorst e J. J. Abrams.

Para explicar o porquê de S. ter despertado em mim esse desejo, eu preciso (tentar) explicar o próprio livro em si, não em seu conteúdo, mas em sua materialidade. Eu poderia me apropriar de um conceito da geometria e dizer que, da mesma forma que existem cubos e hipercubos, S. seria uma espécie de hiperlivro, ou seja, um livro para além da dimensionalidade típica de seu suporte. Mas essa analogia, ainda que precisa, não ajudaria muito a visualizar o que o livro é de fato.

Para facilitar, tentemos passar do abstrato para o concreto em uma descrição dos elementos que o formam. Ao comprar S., adquirimos uma pequena caixa, daquelas que escudam edições especiais de trilogias famosas. Dentro dessa caixa, apenas um romance, chamado O navio de Teseu, de um desconhecido V. M. Straka. O livro apresenta uma capa dura desgastada, com ilustração antiquada. Na lombada, há colada uma etiqueta de classificação daquelas utilizadas em bibliotecas e, nela, a indicação do ano de 1949. O livro pesa mais do que o esperado. Ao abri-lo, nos deparamos com páginas amareladas e já na primeira delas um carimbo vermelho indicando “livro para empréstimo”. Folheando as seguintes, percebemos que o livro inteiro está rabiscado com anotações de lápis e caneta. Mas não só isso: está, também, recheado de papeis soltos, cartões postais, cópias de cartas antigas e até um guardanapo.

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Fonte: [https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/91EOvgoCDAL.jpg]


E aí está o começo desse jogo da ficção a que me refiro no título deste texto. O navio de Teseu é um romance que serve como elemento estruturador e centralizador de um outro romance – ou um hiper-romance –, S., constituído pela soma de O navio de Teseu e seus elementos paratextuais (ou pseudoparatextuais), referentes às trocas de mensagens entre dois personagens que estudam o romance. Nesse sentido, a própria materialidade do livro, da textura da capa ao amarelado das páginas, é, em um nível, parte de um jogo ficcional – e também sensorial – que se perderia em uma experiência digitalizada.

Se essa própria materialidade de S. como fonte de sentidos – e sensações – já cria em si um jogo ficcional complexo, esse jogo se expande, também, para seu conteúdo. Nesse sentido, aproximo S. de uma estreita categoria de livros que suspeito, lá no fundo, serem forjados para servir de exemplos perfeitos em aulas de Teoria Literária. Diante das reflexões que a disciplina exige sobre a natureza e o funcionamento da ficção e seus constituintes, um livro como as Ficções de Borges, por exemplo, parece explorar cada um de seus limites, seja na figura de Pierre Menard como autor impossível, na realidade transbordante de Tlön ou ainda na hermenêutica sem fundo da obra de Herbert Quain. E S., acredito, é um herdeiro direto dessa tradição.

Como no texto borgiano, V. M. Straka é um autor ficcional e O navio de Teseu uma obra ficcional. No entanto, diferente da obra produzida por Herbert Quain, existente apenas nos trechos selecionados para o suposto ensaio que lhe dá forma, o romance de Straka nos é oferecido em sua totalidade, tornando-o, além de ficcional, real. Explico: ao levarmos em consideração os elementos pseudoparatextuais da obra antes mencionados, O navio de Teseu se torna um objeto ficcional interno à obra S. Se, por outro lado, optamos por ignorar o jogo que se constrói ao redor da obra de Straka e nos focarmos no romance em si, este passa a assumir, de certa forma, o mesmo estatuto que qualquer outro romance encontrado em nossa realidade.

O confuso mecanismo não passa de uma forma complexa de mise en abyme – mais conhecido na cultura pop como efeito inception, em homenagem ao longa-metragem homônimo de Nolan. Assim sendo, a lógica é a mesma já consolidada por Xerazade n’As mil e uma noites: uma narrativa construída dentro de outra narrativa. Diferente do mise en abyme tradicional, no entanto, em que a narrativa A dá lugar a uma narrativa B geralmente narrada por algum dos personagens de A, no caso de S. a narrativa A não assume os moldes tradicionais de um texto, mas é construída através dos indícios deixados no livro (as anotações e os papéis variados). Assim, enquanto a narrativa B – o livro de Straka – é apresentado como um texto literário comum, a narrativa A – o livro S. – é um hipertexto pelo qual o leitor, encarnando um terceiro personagem dessa camada narrativa, pode passear livremente (ou até mesmo ignorá-lo). 

E aqui entra o terceiro nível desse jogo ficcional. Quem conhece J. J. Abrams, provavelmente está familiarizado com um de seus trabalhos mais populares: a série televisiva Lost, lançada em 2004 pela ABC. Narrando os eventos insólitos vividos por um grupo de sobreviventes de um acidente de avião em uma ilha aparentemente deserta, um dos grandes apelos da série era dar ao espectador o papel de investigar, através de pequenos indícios distribuídos pela história, os segredos daquele lugar misterioso. Já na série, Abrams explorava os paratextos a fim de ampliar o engajamento do espectador nesse processo mais ativo de interpretação, criando propagandas ficcionais com códigos secretos, blogs, call centers funcionais e sites de empresas fictícias que o leitor podia explorar em busca de novas pistas para se aprofundar no mundo de Lost.


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Esse jogo de investigação é também levado para S., envolvendo o leitor em um clima de paranoia e conspiração envolvendo Straka, seu editor e os estudantes que anotam o livro. No entanto, diferente do que poderíamos esperar de um clássico romance de enigma, que detém o pioneirismo em colocar o leitor nesse papel de detetive, as produções de Abrams não nos conduzem a uma verdade final, a um sentido absoluto revelado. O processo expande nossa visão do universo ficcional construído, sem nunca, no entanto, nos levar a um ponto final. São assim, retomando outro termo borgiano, ruínas circulares.

Percebam: me aproximo do final desse texto e mal mencionei o conteúdo da história. Mas talvez seja melhor assim. Afinal, explorar S. é deixar-se levar pelo mistério. É explorar às cegas um velho livro de biblioteca carregado de histórias: a que o romance traz; a de sua escrita através das notas de edição; a de sua leitura através das anotações; e, por fim, a que vai se formando durante sua própria investigação.


Pedro Sasse é pós-doutorando na UFF, onde desenvolve o projeto “A estrutura da narrativa criminal”. Seus interesses de pesquisa recaem sobre temas como violência, medo urbano, criminalidade e distopias, sobretudo na literatura brasileira. 


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