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Você deveria ler Matilde Campilho

 


Era 2016, eu estava em um congresso [1] sobre literatura na UERJ, sentada ao lado de dois pesquisadores no tablado que ficava ao fundo da sala. A cena era essa, sete pesquisadores à postos para apresentar suas pesquisas e uma singela plateia de um pouco mais de dez pessoas, prontas a assistir e comentar sobre as comunicações.

Entre os sete, eu era a última a me apresentar e eu conto isso com vivacidade e riqueza de detalhes a fim de explicar o motivo exato da escolha para esta resenha que escrevo. Chateada pela minha posição, mas igualmente curiosa pela apresentação dos colegas, ouvi a todos pacientemente, inclusive impressionada pelas pesquisas originais e distintas. Por acaso, os dois colegas ao meu lado tratariam sobre o mesmo livro, do qual eu nunca tinha ouvido falar.

Portuguesa radicada no Brasil entre 2011 e 2013, ela havia publicado um livro em 2015, livro esse que era um sucesso de vendas e publicidade, recomendado por Carlito Azevedo, um poeta já reconhecido pelo público, que assinava a orelha da edição. Os poemas, escritos à moda Walt Whitman, em versos livres, retratam um pouco das pequenas incursões do sujeito poético na cidade, seja ela Lisboa ou Rio de Janeiro. Movimento esse também representado pelas deambulações na própria escrita, numa tentativa de criar uma experiência.

Voltando ao congresso, passadas algumas horas e alguns cochichos entre nós, compreendi que ambos pesquisavam sobre a inserção de letras de músicas e referências musicais nos poemas, como uma sonoridade audível aos olhos do leitor. Interessante que, na época, eu pesquisava sobre a remoção intencional de palavras do poema, o que era o oposto do que eles estudavam. Pensando por esse viés, após as comunicações, ficamos na mesa por alguns instantes, dando o tempo exato para que um dos colegas colocasse a mão sobre o meu braço e cochichasse: “eu acho que você deveria ler a Matilde Campilho” e para que, quase teatralmente, a colega ao lado esquerdo acendesse com a cabeça em concordância.

Com o gesto, fiquei curiosa com a correlação feita entre Matilde Campilho e a minha pesquisa, visto que na época eu escrevia sobre silêncio. Jóquei foi um desses livros que eu comprei porque me mandaram [2], mas que me surpreendeu positivamente em primeiro lugar como leitora. Publicado em 2015 pela Editora 34, ele traz na capa o vermelho e o branco, sem outros adereços, ressaltando apenas o título da obra como elemento principal de entrada. O movimento de saltitar a galopes de cavalo, próprio de jóqueis, mostra-se aparente na leitura principalmente quando o leitor é levado a pensar sobre os lugares com o passar dos poemas.

Ressalto isso porque o livro é dividido em sete partes e retrata lugares e personagens diferentes. Em “Fur”, primeiro poema do livro, a cidade pano de fundo é Nova Iorque. Já em “Rio de Janeiro – Lisboa”, o sujeito poético está no Rio de Janeiro, escrevendo sobre a dualidade da existência entre natureza e violência. Lisboa também aparece como cenário, sem estar tão distante do olhar do poeta. Por isso, o movimento entre cidades dá uma cadência diferenciada à leitura do livro, fazendo com que a linha de conexão entre os poemas esteja para além da concretude do espaço de encenação. Motivados pelo olhar do sujeito, vamos percorrendo ruas e descrevendo pequenas cenas, pinçando delas pequenas reflexões sobre a vida.

Exemplifico aqui com a leitura do primeiro poema. Após capa, sumário e dedicatória, indo diretamente à abertura, “Fur” é o primeiro texto que se mostra ao leitor. De início, percebemos que fur (trad. penugem) não é uma palavra da língua portuguesa. Aliado a isso, lemos na epígrafe do poema uma menção a Walt Whitman, autor que morava no Brooklyn:

 

FUR

 

com cara de Walt Whitman

foi assim que você pensou que eu viria ao mundo

foi assim que você me viu na floresta

foi assim que você me viu pendurado no poste elétrico

sempre pendurado num ramo qualquer

sempre usando o verão.

você se lembra daquele verão no Brooklyn

em que ficamos perseguindo os bombeiros

durante todo o dia apenas para ver

uma vez e depois outra vez

o leque aquático que se abria sobre o fogo?

você citava poemas húngaros mas nesse tempo

eu só queria saber de inventar uma língua

que não existisse.

você se lembra do concierge que nos recebia

na pensão do Brooklyn como se nunca

nos houvesse visto antes?

e não havia semana que passasse

em que nós não dormíssemos

pelo menos uma madrugada

na pensão do Brooklyn.

me lembro dos dólares amassados

que eu semanalmente tirava do bolso

para pagar ao Doug

eu sabia o nome do Doug

o Doug nos tratava disfarçadamente

por menina e menino.

você falava que os dólares vinham

sempre com uma forma diferente

eu adoro como você consegue tirar um coelho do bolso

eu adoro como você consegue tirar uma lâmpada do bolso

eu adoro como você consegue tirar a Beretta 92fs do bolso

 

foi assim que você pensou que eu ficaria

no mundo

com corpo de besta vestida

usando um lápis pousado na orelha

 

foi assim que você me viu

pedindo três ovos para Miss Elsie

a senhora da mercearia na Court Street

ela me deu oito ovos

porque ela sempre dava alguma coisa

ela me achava uma graça e ela não acreditava

em números ímpares. eu também não.

eu lembro de você na mercearia

do Brooklyn

você costumava ficar lá atrás

brincando na seção das ferramentas.

se eu tivesse mais do que um coelho,

uma lâmpada ou uma pistola

eu teria te comprado uma Black & Decker

eu acho que você seria a pessoa mais feliz da ilha

com um Black & Decker enfiado no cinto.

 

foi assim que você pensou que eu ficaria no mundo,

usando flores em meu cabelo negro,

sempre escondidas no emaranhado dos cachos

sempre escondidas no emaranhado do caos

de minha cabeça negra.

 

só você sabia quantas flores eu usava

porque agora eu já sei

que você dedicava as noites

à contagem. Deus não dorme

e você também não. [3]

 

Pensando em uma leitura superficial, vários detalhes me saltam aos olhos, desde a combinação de “não acreditar em números ímpares” até mesmo a posição das negativas nos versos. Olhando mais atentamente para a construção das negações, ao descrever nos versos “você citava poetas húngaros mas nesse tempo/ eu só queria inventar uma língua/ que não existisse” não existe a menção a palavra nova. Ou seja, aparentemente a ideia descrita nos versos não é construir uma língua que pudesse existir após a criação, mas fazer o paradoxal movimento de não existência. O que, diga-se de passagem, não foi o que eu havia entendido da minha primeira leitura. Houve a necessidade de retornar [4] ao verso para enxergar algo que havia sido, de certa forma, desenhado para essa compreensão.

Lendo “Fur”, percebo que por várias vezes deixei passar a posição das palavras em cada linha. Nossa leitura ensaiada faz com que o cérebro repense a ordem do texto, como se puséssemos um corretor automático para funcionar: “isso só pode ser assim” e ao reler percebemos que fomos ludibriados pelo nosso próprio automatismo. Leiamos o seguinte trecho: “você se lembra do concierge que nos recebia/ na pensão do Brooklyn como se nunca/ nos houvesse visto antes?”. O verso “nos houvesse visto antes?” é um desses que passa desapercebido pela automação. Na primeira vez que foi lido, a pontuação do verso havia desaparecido para mim. Na segunda vez, notei a interrogação, que sempre esteve ali, disfarçando o sentido que havia sido entregue nas entrelinhas. Cabe a nós compreender que, apesar da pergunta, o que existe ali é uma afirmação, mesmo que compreendida sem a leitura do verso anterior.

Continuando a leitura ensaiada, os meus versos preferidos são estes, em que o furadeira Black & Decker passa a significar um adereço de figurino de faroeste. Colocando a furadeira no cinto, o sujeito recria uma imagem simbólica de autoridade e conserto do mundo [5].

 

você costumava ficar lá atrás

brincando na seção das ferramentas.

se eu tivesse mais do que um coelho,

uma lâmpada ou uma pistola

eu teria te comprado uma Black & Decker

eu acho que você seria a pessoa mais feliz da ilha

com um Black & Decker enfiado no cinto.

 

Além disso, eu não poderia deixar de citar brevemente que no poema seguinte, a imagem da arma é retomada com um sentido a mais. No segundo poema, a moça escolhe aquilo que pode colocar em si, e entre os objetos comuns a cena da penteadeira, inclui-se a “carabina calibre 12”, inserindo o perigo como uma das sugestões de leitura.

 

A moça de vinte e sete anos ainda está sentada ao toucador, de frente para o rosto, absolutamente indecisa sobre qual dos objetos escolher. Entre o batom alaranjado, a carabina calibre 12, o pó de arroz e o crucifixo em miniatura, vai uma distância de dois passos a galope.

 

Não obstante, essas digressões para pequenos olhares, segundos de experiência, são o que talvez me façam pensar mais sobre o silêncio do que aquilo que os meus colegas apontaram em 2016. Compreendo que em “Roma amor” existe o registro de uma letra de música e que em “Vermelho vivo” existe a referência a uma musicalidade. Somado a isso, ainda lembro que há mesmo a questão do som e silêncio como pares registrados pelo tempo. A música nasce da sequência de alternância esses dois pares.

Se for permitida uma digressão, eu particularmente me interesso por essas leituras que nos ensinam coisas que estão fora do nosso alcance. Por um ponto de vista cultural, a leitura me ensinou algo muito interessante. A referência a Miss Elsie (indo a uma breve consulta na internet) é, na verdade, sobre um famoso quadro de John Singer Sargent, um pintor que foi incumbido de pintar a filha da nobre família Palmer ao longo da sua vida. A referência, mais do que sugestiva, é imagética, oferecendo mesmo ao leitor a figura em cores do que está sendo representado no verso.

Existe uma graça envolvida na leitura desse poema, é jubilosa a forma como o roteiro é feito, há uma vontade de assistir, de experimentar, estar e criar imagens com as cenas da cidade. Os bombeiros apagam o fogo, mas, ainda assim, como é bonito aquele arco-íris de água formado pela mangueira. O artifício da descrição é quase representativo de um olhar infantil que vê as ações corriqueiras pela primeira vez, como uma pintura, que ao fazer-se exige que o pintor esteja criando algo que na verdade nunca foi visto.

Agora, deixemos de lado o poema e retomemos a minha cena de leitura. Após terminar o livro, fiquei imaginando as possibilidades de confluência entre o silêncio poético (palavras não ditas, frases interrompidas e reescritas de versos) e os poemas de Matilde. Imaginei que houvesse algo mais do que referências musicais ao longo do texto. Mesmo assim, naquela época, dei a minha procura como finalizada, e fechei o livro sem muita pretensão de voltar a ele. E, enquanto estive pensando sobre essa resenha que escrevo agora, decidi por bem reler não só os poemas, mas também as anotações feitas naquele ano, como uma forma de rememorar a cena e a pesquisadora que eu era.

Em um dos poemas, há uma anotação minha, a lápis, sobre uma sensação tênue experienciada nos seguintes versos “Aqui é a beira da praia de Heak e ameaça chover há cinco horas certas.”. Quero dizer, ali em algum momento houve a compreensão de que o tempo não era tão somente o espaço de silêncio inserido entre palavras (ou palavras não ditas, frases interrompidas e reescritas de versos, como expliquei antes). Havia também a própria noção de silêncio na experiência de escrita de Matilde [6]

Matilde escreve observando o tempo e expressa isso na supressão de todo o resto. A hora certa é a hora que não inclui nada mais. É apenas um instante selecionado entre os outros. Ao escolher, o poeta silencia o resto e lemos apenas aquilo que nos foi dado a ver sobre o tempo. Eu escrevi assim: “Gosto da Matilde porque ela me lembra do tempo”. Talvez nisso os meus colegas tivessem razão, eu deveria mesmo ter lido Matilde Campilho para entender que a experiência proposta nos poemas não está somente naquilo que lemos, mas também naquilo que entendemos sobre a duração delas.



[1] O congresso em questão foi a ABRALIC de 2016.

[2] Uma brincadeira com o título de outra publicação portuguesa Vim porque me pagavam da Golgona Anghel de 2011.

[3] CAMPILHO, Matilde. Jóquei. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 9.

[4] Movimento habitual da leitura de poemas: verso significar voltar.

[5] Do ponto de vista camoniano.

[6] Ou nessa performance do sujeito poético que escreve.











Juliana Valentim é empresária, professora e revisora de textos. Leitora assídua de poesia, escreve sobre o silêncio. 

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