Entre os sete, eu era a última a
me apresentar e eu conto isso com vivacidade e riqueza de detalhes a fim de
explicar o motivo exato da escolha para esta resenha que escrevo. Chateada pela
minha posição, mas igualmente curiosa pela apresentação dos colegas, ouvi a todos
pacientemente, inclusive impressionada pelas pesquisas originais e distintas.
Por acaso, os dois colegas ao meu lado tratariam sobre o mesmo livro, do qual
eu nunca tinha ouvido falar.
Portuguesa radicada no Brasil
entre 2011 e 2013, ela havia publicado um livro em 2015, livro esse que era um
sucesso de vendas e publicidade, recomendado por Carlito Azevedo, um poeta já
reconhecido pelo público, que assinava a orelha da edição. Os poemas, escritos
à moda Walt Whitman, em versos livres, retratam um pouco das pequenas incursões
do sujeito poético na cidade, seja ela Lisboa ou Rio de Janeiro. Movimento esse
também representado pelas deambulações na própria escrita, numa tentativa de
criar uma experiência.
Voltando ao congresso, passadas
algumas horas e alguns cochichos entre nós, compreendi que ambos pesquisavam
sobre a inserção de letras de músicas e referências musicais nos poemas, como
uma sonoridade audível aos olhos do leitor. Interessante que, na época,
eu pesquisava sobre a remoção intencional de palavras do poema, o que era o
oposto do que eles estudavam. Pensando por esse viés, após as comunicações,
ficamos na mesa por alguns instantes, dando o tempo exato para que um dos
colegas colocasse a mão sobre o meu braço e cochichasse: “eu acho que você
deveria ler a Matilde Campilho” e para que, quase teatralmente, a colega ao
lado esquerdo acendesse com a cabeça em concordância.
Com o gesto, fiquei curiosa com a
correlação feita entre Matilde Campilho e a minha pesquisa, visto que na época eu
escrevia sobre silêncio. Jóquei foi um desses livros que eu
comprei porque me mandaram [2],
mas que me surpreendeu positivamente em primeiro lugar como leitora. Publicado
em 2015 pela Editora 34, ele traz na capa o vermelho e o branco, sem outros
adereços, ressaltando apenas o título da obra como elemento principal de
entrada. O movimento de saltitar a galopes de cavalo, próprio de jóqueis,
mostra-se aparente na leitura principalmente quando o leitor é levado a pensar
sobre os lugares com o passar dos poemas.
Ressalto isso porque o livro é
dividido em sete partes e retrata lugares e personagens diferentes. Em “Fur”,
primeiro poema do livro, a cidade pano de fundo é Nova Iorque. Já em “Rio de
Janeiro – Lisboa”, o sujeito poético está no Rio de Janeiro, escrevendo sobre a
dualidade da existência entre natureza e violência. Lisboa também aparece como
cenário, sem estar tão distante do olhar do poeta. Por isso, o movimento entre
cidades dá uma cadência diferenciada à leitura do livro, fazendo com que a
linha de conexão entre os poemas esteja para além da concretude do espaço de
encenação. Motivados pelo olhar do sujeito, vamos percorrendo ruas e
descrevendo pequenas cenas, pinçando delas pequenas reflexões sobre a vida.
Exemplifico aqui com a leitura do
primeiro poema. Após capa, sumário e dedicatória, indo diretamente à abertura, “Fur”
é o primeiro texto que se mostra ao leitor. De início, percebemos que fur
(trad. penugem) não é uma palavra da língua portuguesa. Aliado a isso, lemos na
epígrafe do poema uma menção a Walt Whitman, autor que morava no Brooklyn:
FUR
com cara de Walt Whitman
foi assim que você pensou que eu viria ao mundo
foi assim que você me viu na floresta
foi assim que você me viu pendurado no poste elétrico
sempre pendurado num ramo qualquer
sempre usando o verão.
você se lembra daquele verão no Brooklyn
em que ficamos perseguindo os bombeiros
durante todo o dia apenas para ver
uma vez e depois outra vez
o leque aquático que se abria sobre o fogo?
você citava poemas húngaros mas nesse tempo
eu só queria saber de inventar uma língua
que não existisse.
você se lembra do concierge que nos recebia
na pensão do Brooklyn como se nunca
nos houvesse visto antes?
e não havia semana que passasse
em que nós não dormíssemos
pelo menos uma madrugada
na pensão do Brooklyn.
me lembro dos dólares amassados
que eu semanalmente tirava do bolso
para pagar ao Doug
eu sabia o nome do Doug
o Doug nos tratava disfarçadamente
por menina e menino.
você falava que os dólares vinham
sempre com uma forma diferente
eu adoro como você consegue tirar um coelho do bolso
eu adoro como você consegue tirar uma lâmpada do bolso
eu adoro como você consegue tirar a Beretta 92fs do
bolso
foi assim que você pensou que eu ficaria
no mundo
com corpo de besta vestida
usando um lápis pousado na orelha
foi assim que você me viu
pedindo três ovos para Miss Elsie
a senhora da mercearia na Court Street
ela me deu oito ovos
porque ela sempre dava alguma coisa
ela me achava uma graça e ela não acreditava
em números ímpares. eu também não.
eu lembro de você na mercearia
do Brooklyn
você costumava ficar lá atrás
brincando na seção das ferramentas.
se eu tivesse mais do que um coelho,
uma lâmpada ou uma pistola
eu teria te comprado uma Black & Decker
eu acho que você seria a pessoa mais feliz da ilha
com um Black & Decker enfiado no cinto.
foi assim que você pensou que eu ficaria no mundo,
usando flores em meu cabelo negro,
sempre escondidas no emaranhado dos cachos
sempre escondidas no emaranhado do caos
de minha cabeça negra.
só você sabia quantas flores eu usava
porque agora eu já sei
que você dedicava as noites
à contagem. Deus não dorme
e você também não. [3]
Pensando em uma leitura
superficial, vários detalhes me saltam aos olhos, desde a combinação de “não
acreditar em números ímpares” até mesmo a posição das negativas nos versos. Olhando
mais atentamente para a construção das negações, ao descrever nos versos “você citava poetas húngaros
mas nesse tempo/ eu só queria inventar uma língua/ que não existisse” não
existe a menção a palavra nova. Ou seja, aparentemente a ideia descrita
nos versos não é construir uma língua que pudesse existir após a criação, mas
fazer o paradoxal movimento de não existência. O que, diga-se de passagem, não
foi o que eu havia entendido da minha primeira leitura. Houve a necessidade de
retornar [4]
ao verso para enxergar algo que havia sido, de certa forma, desenhado
para essa compreensão.
Lendo “Fur”, percebo que por
várias vezes deixei passar a posição das palavras em cada linha. Nossa leitura
ensaiada faz com que o cérebro repense a ordem do texto, como se puséssemos um
corretor automático para funcionar: “isso só pode ser assim” e ao reler
percebemos que fomos ludibriados pelo nosso próprio automatismo. Leiamos o
seguinte trecho: “você se lembra do concierge que nos recebia/ na pensão
do Brooklyn como se nunca/ nos houvesse visto antes?”. O verso “nos houvesse
visto antes?” é um desses que passa desapercebido pela automação. Na primeira
vez que foi lido, a pontuação do verso havia desaparecido para mim. Na segunda
vez, notei a interrogação, que sempre esteve ali, disfarçando o sentido que
havia sido entregue nas entrelinhas. Cabe a nós compreender que, apesar da
pergunta, o que existe ali é uma afirmação, mesmo que compreendida sem a
leitura do verso anterior.
Continuando a leitura ensaiada, os
meus versos preferidos são estes, em que o furadeira Black & Decker passa a
significar um adereço de figurino de faroeste. Colocando a furadeira no cinto,
o sujeito recria uma imagem simbólica de autoridade e conserto do mundo [5].
você costumava ficar lá atrás
brincando na seção das ferramentas.
se eu tivesse mais do que um coelho,
uma lâmpada ou uma pistola
eu teria te comprado uma Black & Decker
eu acho que você seria a pessoa mais feliz da ilha
com um Black & Decker enfiado no cinto.
Além disso, eu não
poderia deixar de citar brevemente que no poema seguinte, a imagem da arma é
retomada com um sentido a mais. No segundo poema, a moça escolhe aquilo que
pode colocar em si, e entre os objetos comuns a cena da penteadeira, inclui-se
a “carabina calibre 12”, inserindo o perigo como uma das sugestões de leitura.
A moça de vinte e sete anos ainda está sentada ao toucador, de frente
para o rosto, absolutamente indecisa sobre qual dos objetos escolher. Entre o
batom alaranjado, a carabina calibre 12, o pó de arroz e o crucifixo em
miniatura, vai uma distância de dois passos a galope.
Não obstante, essas digressões
para pequenos olhares, segundos de experiência, são o que talvez me façam
pensar mais sobre o silêncio do que aquilo que os meus colegas apontaram em
2016. Compreendo que em “Roma amor” existe o registro de uma letra de música e
que em “Vermelho vivo” existe a referência a uma musicalidade. Somado a isso,
ainda lembro que há mesmo a questão do som e silêncio como pares registrados
pelo tempo. A música nasce da sequência de alternância esses dois pares.
Se for permitida uma digressão, eu
particularmente me interesso por essas leituras que nos ensinam coisas que
estão fora do nosso alcance. Por um ponto de vista cultural, a leitura me
ensinou algo muito interessante. A referência a Miss Elsie (indo a uma breve
consulta na internet) é, na verdade, sobre um famoso quadro de John Singer
Sargent, um pintor que foi incumbido de pintar a filha da nobre família Palmer
ao longo da sua vida. A referência, mais do que sugestiva, é imagética,
oferecendo mesmo ao leitor a figura em cores do que está sendo representado no
verso.
Existe uma graça envolvida na
leitura desse poema, é jubilosa a forma como o roteiro é feito, há uma vontade
de assistir, de experimentar, estar e criar imagens com as cenas da cidade. Os
bombeiros apagam o fogo, mas, ainda assim, como é bonito aquele arco-íris de
água formado pela mangueira. O artifício da descrição é quase representativo de
um olhar infantil que vê as ações corriqueiras pela primeira vez, como uma
pintura, que ao fazer-se exige que o pintor esteja criando algo que na verdade
nunca foi visto.
Agora, deixemos de lado o poema e
retomemos a minha cena de leitura. Após terminar o livro, fiquei imaginando as
possibilidades de confluência entre o silêncio poético (palavras não ditas,
frases interrompidas e reescritas de versos) e os poemas de Matilde. Imaginei
que houvesse algo mais do que referências musicais ao longo do texto. Mesmo
assim, naquela época, dei a minha procura como finalizada, e fechei o livro sem
muita pretensão de voltar a ele. E, enquanto estive pensando sobre essa resenha
que escrevo agora, decidi por bem reler não só os poemas, mas também as
anotações feitas naquele ano, como uma forma de rememorar a cena e a
pesquisadora que eu era.
Em um dos poemas, há uma anotação
minha, a lápis, sobre uma sensação tênue experienciada nos seguintes versos
“Aqui é a beira da praia de Heak e ameaça chover há cinco horas certas.”. Quero
dizer, ali em algum momento houve a compreensão de que o tempo não era tão
somente o espaço de silêncio inserido entre palavras (ou palavras não ditas,
frases interrompidas e reescritas de versos, como expliquei antes). Havia
também a própria noção de silêncio na experiência de escrita de Matilde [6]
Matilde escreve observando o tempo
e expressa isso na supressão de todo o resto. A hora certa é a hora que
não inclui nada mais. É apenas um instante selecionado entre os outros. Ao
escolher, o poeta silencia o resto e lemos apenas aquilo que nos foi dado a ver
sobre o tempo. Eu escrevi assim: “Gosto da Matilde porque ela me lembra do
tempo”. Talvez nisso os meus colegas tivessem razão, eu deveria mesmo ter lido
Matilde Campilho para entender que a experiência proposta nos poemas não está
somente naquilo que lemos, mas também naquilo que entendemos sobre a duração
delas.
[1] O congresso
em questão foi a ABRALIC de 2016.
[2] Uma
brincadeira com o título de outra publicação portuguesa Vim porque me
pagavam da Golgona Anghel de 2011.
[3] CAMPILHO, Matilde. Jóquei. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 9.
[4] Movimento
habitual da leitura de poemas: verso significar voltar.
[5] Do
ponto de vista camoniano.
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